Resumo:
Os pesquisadores descobriram que, em moscas privadas de sono, neurônios específicos associados ao sono apresentam alterações em suas mitocôndrias (responsáveis pela produção de energia celular) e no uso de energia. Essas mudanças moleculares, que se revertem com o descanso, indicam que a necessidade de sono está ligada ao acúmulo de estresse metabólico. Manipular esses processos mitocondriais pode influenciar a pressão para dormir, sugerindo que o sono é, em parte, uma resposta ao estresse metabólico que se acumula durante a vigília.
A “pressão do sono” é uma variável central no mecanismo de regulação do sono, mas ainda não é totalmente compreendida em termos de como funciona fisicamente no cérebro.
A pressão do sono é o que torna as pessoas cada vez mais sonolentas após muitas horas acordadas, mas os cientistas ainda não sabem exatamente como essa sensação de “necessidade de dormir” é produzida nas células do cérebro.
O que se sabe é que, quando ficamos acordados por longos períodos, ocorrem diversas mudanças no cérebro. Estas incluem alterações nos padrões de disparo dos neurônios (o modo como eles enviam sinais), mudanças na força das conexões entre eles (sinapses), variações nas concentrações de algumas substâncias químicas, como os metabólitos, e até mesmo mudanças nos genes que estão ativos ou inativos nas células.
No entanto, ainda não está claro se essas mudanças causam a sensação de necessidade de sono ou se são apenas consequências do fato de que estamos há muito tempo sem dormir.
Para investigar isso, uma boa abordagem é observar tipos específicos de neurônios que têm papéis diretos em nos fazer dormir e manter o sono. Esses neurônios “especializados” provavelmente revelam, de maneira mais direta, as razões pelas quais precisamos dormir, já que eles regulam o processo de dormir.
Para entender melhor as mudanças moleculares (ou seja, no nível das células e moléculas) que ocorrem no cérebro e que podem estar ligadas ao sono, pesquisadores da Universidade de Oxford analisaram o que é chamado de transcriptoma — o conjunto completo de mensagens genéticas ativas em células.
Eles usaram uma técnica chamada de “sequenciamento de célula única” para estudar as mensagens genéticas em neurônios específicos de moscas, tanto em moscas bem descansadas quanto em moscas que foram privadas de sono.
Os pesquisadores também usaram um marcador fluorescente que permite identificar com precisão neurônios que induzem o sono, chamados de dFBNs.
Esses neurônios, que têm projeções para uma área específica do cérebro das moscas conhecida como corpo em forma de leque dorsal, foram enriquecidos no estudo para comparar como eles reagem à falta de sono em comparação com outros tipos de células do cérebro.
Em paralelo, um segundo estudo confirmou que esses neurônios (dFBNs) desempenham um papel importante na promoção do sono, usando ferramentas genéticas avançadas baseadas em informações detalhadas sobre quais genes estavam ativos nesses neurônios.
Para que o cérebro controle o sono adequadamente, ele precisa de um “sinal” que indique a necessidade de sono enquanto estamos acordados, e um “alívio” dessa necessidade durante o sono.
Para entender isso, os pesquisadores examinaram os transcriptomas de células cerebrais isoladas de moscas bem descansadas e de moscas privadas de sono.
Eles observaram que, nos neurônios dFBNs, a privação de sono leva a um aumento na atividade de genes que produzem proteínas essenciais para o funcionamento das mitocôndrias — estruturas celulares responsáveis por gerar energia, em forma de ATP (adenosina trifosfato).
Além disso, essas mudanças genéticas vinham acompanhadas de alterações físicas nas mitocôndrias: elas se fragmentavam, passavam por um processo chamado mitofagia (onde mitocôndrias danificadas são eliminadas) e aumentavam o número de pontos de contato com outra estrutura celular, o retículo endoplasmático.
Esses pontos de contato criam “pontes” para que as mitocôndrias reparem danos causados pela oxidação de lipídios, uma consequência do estresse gerado pela privação de sono.
Interessantemente, essas mudanças nas mitocôndrias eram temporárias e se revertiam após um período de recuperação do sono. No entanto, se os pesquisadores interferissem na “respiração” das mitocôndrias, instalando mecanismos para escoar o excesso de elétrons, as moscas não apresentavam tanta pressão para dormir.
Para testar o impacto da fragmentação das mitocôndrias nesses neurônios dFBNs, os pesquisadores induziram ou inibiram artificialmente o processo de fissão (divisão) das mitocôndrias. Quando as mitocôndrias se fundiam excessivamente, a excitabilidade dos neurônios e o tempo de sono aumentavam.
Já quando as mitocôndrias eram fragmentadas, tanto a excitabilidade dos neurônios quanto a duração do sono diminuíam. Isso sugere que a fusão e a fissão mitocondrial influenciam diretamente a pressão para dormir.
O sono altera a dinâmica mitocondrial. a, b) Projeções de intensidade máxima de mitocôndrias detectadas automaticamente (a, preto) e seus parâmetros morfométricos (b) em dendritos dFBN de moscas descansadas, moscas privadas de sono, moscas permitidas a se recuperar por 24 h após a privação de sono e moscas privadas de sono coexpressando AOX ou TrpA1. O número de mitocôndrias não é alterado pela privação de sono, mas é elevado após o sono de recuperação e em moscas privadas de sono que coexpressam AOX ou TrpA1 ativado. c) Visualização de eventos na fissão mitocondrial. d) Recrutamento de Drp1. A privação de sono aumenta a fluorescência anti-FLAG (codificada por intensidade de acordo com a chave à direita) dentro de contornos mitocondriais detectados automaticamente. e) Contatos mitocôndrias–ER. f) Mitofagia. Projeções de intensidade somada de dendritos dFBN expressando mito-QC.
Outro achado importante foi que, após a privação de sono, os níveis de ATP nos neurônios dFBNs aumentavam. Esse aumento era causado por um consumo reduzido de ATP, que resulta da supressão das atividades desses neurônios devido ao estresse de estar acordado por longos períodos.
Contudo, esse processo também aumenta a suscetibilidade ao estresse oxidativo, o que danifica as mitocôndrias.
Finalmente, o estudo mostrou que a pressão para dormir pode ser alterada manipulando o uso de energia nas células. Quando os cientistas impediam que a energia da célula fosse usada para criar ATP, a pressão para dormir era reduzida. Por outro lado, quando estimulavam a produção de ATP em excesso, usando uma “bomba de prótons” ativada por luz, a necessidade de sono aumentava.
Essas descobertas sugerem que o sono pode ser uma necessidade fisiológica inevitável associada ao metabolismo das mitocôndrias, semelhante ao que ocorre durante o processo de envelhecimento.
Em outras palavras, o estresse metabólico acumulado durante o tempo em que estamos acordados parece ser aliviado pelo sono, e a própria necessidade de dormir pode ser uma consequência desse acúmulo de estresse metabólico.
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Mitochondrial origins of the pressure to sleep
Raffaele Sarnataro, Cecilia D. Velasco, Nicholas Monaco, Anissa Kempf, Gero Miesenböck
Science, 4 NOV 2024. preprint doi: https://doi.org/10.1101/2024.02.23.581770
Abstract:
The neural control of sleep requires that sleep need is sensed during waking and discharged during sleep. To obtain a comprehensive, unbiased view of molecular changes in the brain that may underpin these processes, we have characterized the transcriptomes of single cells isolated from rested and sleep-deprived flies. Transcripts upregulated after sleep deprivation, in sleep-control neurons projecting to the dorsal fan-shaped body (dFBNs) but not ubiquitously in the brain, encode almost exclusively proteins with roles in mitochondrial respiration and ATP synthesis. These gene expression changes are accompanied by mitochondrial fragmentation, enhanced mitophagy, and an increase in the number of contacts between mitochondria and the endoplasmic reticulum, creating conduits for the replenishment of peroxidized lipids. The morphological changes are reversible after recovery sleep and blunted by the installation of an electron overflow in the respiratory chain. Inducing or preventing mitochondrial fission or fusion in dFBNs alters sleep and the electrical properties of sleep-control cells in opposite directions: hyperfused mitochondria increase, whereas fragmented mitochondria decrease, neuronal excitability and sleep. ATP levels in dFBNs rise after enforced waking because of diminished ATP consumption during the arousal-mediated inhibition of these neurons, which predisposes them to heightened oxidative stress. Consistent with this view, uncoupling electron flux from ATP synthesis relieves the pressure to sleep, while exacerbating mismatches between electron supply and ATP demand (by powering ATP synthesis with a light-driven proton pump) promotes sleep. Sleep, like ageing, may be an inescapable consequence of aerobic metabolism.
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