O Caminho Da Lembrança: De Um Evento Passado à Reativação No Cérebro
- Lidi Garcia
- há 18 horas
- 4 min de leitura

Para que algo seja considerado uma memória verdadeira, precisa estar conectado a um evento real do passado. Os cientistas descrevem como o cérebro grava e reativa memórias por meio de padrões de atividade neural chamados engramas, especialmente envolvendo o hipocampo. O processo de lembrar envolve reconstrução, não reprodução exata, misturando informações antigas com conhecimento geral e contexto atual. O texto também explica como memórias mudam ao longo do tempo e podem se distanciar do episódio original.
A memória é um processo complexo que depende tanto do funcionamento da mente quanto do cérebro. Neste artigo, pesquisadores da University of Texas at Dallas, discutem como a neurociência cognitiva, a área que estuda como o cérebro produz funções mentais, entende as representações de memória, especialmente a memória episódica.
Esse tipo de memória guarda experiências que vivemos pessoalmente, como um aniversário ou uma conversa importante. A ideia principal é entender como essas lembranças são construídas, armazenadas e ativadas novamente ao longo do tempo.
Um ponto central é a diferença entre representações ativas e representações latentes da memória. As representações ativas são aquelas que estão “ligadas” no momento em que lembramos de algo e têm influência direta na forma como pensamos ou nos comportamos. Já as representações latentes são traços de memória que permanecem guardados e não influenciam diretamente a consciência até serem ativados.

Para os autores, uma representação só pode ser chamada de “memória” se tiver uma ligação causal verdadeira com um evento passado, ou seja, se ela realmente tiver se originado daquele acontecimento e não apenas de imaginação, suposições ou inferências posteriores.
Para explicar como essa conexão causal funciona, os autores usam um modelo chamado reinstalação (ou reinstatement). Em termos simples, esse modelo diz que lembrar de algo significa reativar, no cérebro, padrões de atividade neural que foram ativados quando vivemos o evento.
Essa reativação não é uma cópia perfeita da experiência original, mas uma reconstrução baseada no que foi registrado. Esse processo ajuda a entender como lembranças podem ser tanto fiéis quanto distorcidas.
A neurociência descreve essas representações no nível das células do cérebro. Quando vivemos um evento, certas redes de neurônios, chamadas engramas, se ativam e registram o padrão da experiência.
Um engrama é uma rede de neurônios que “guarda” o padrão de um evento. Quando algo acontece:
1- O hipocampo observa padrões no neocórtex.
2- Ele “cola” esses padrões em um traço temporário.
3- Com o tempo, esse padrão é estabilizado no neocórtex (consolidação).
É como, tirar um print da experiência emocional e sensorial, armazenar uma versão compactada, e depois reabrir o arquivo quando precisamos.

A recuperação da memória episódica envolve a reativação dos processos cognitivos e neurais que estavam ativos quando o evento foi vivenciado inicialmente. Na codificação, os padrões neurais são indexados e armazenados pelo hipocampo, e os processos de separação de padrões mediados pelo hipocampo garantem que eventos episódicos semelhantes sejam armazenados como representações de memória não sobrepostas. Posteriormente, uma pista de recuperação que se sobrepõe parcialmente ao padrão neural desencadeado pelo evento original aciona a completação do padrão hipocampal, o que resulta na reativação da atividade neural originalmente desencadeada pelo episódio na codificação.
O hipocampo, uma estrutura profunda no cérebro, desempenha um papel chave: ele coordena esses padrões e ajuda a “gravar” versões mais estáveis no neocórtex, a camada externa do cérebro onde ficam memórias duradouras. Quando lembramos, parte desse padrão é reativada, o que constitui a representação neural daquela memória.
Os autores também explicam que o conteúdo de uma memória ativa não vem apenas da experiência original. Muitas vezes, nossa mente mistura informações recuperadas do passado com elementos semânticos (conhecimentos gerais), esquemas mentais (padrões comuns) e até inferências baseadas no contexto atual.

Isso significa que as lembranças são, em parte, reconstruções, e não reproduções exatas. Quanto mais antigo o evento, maior a chance de que recodificações sucessivas tenham alterado sua forma original.
Por fim, o artigo discute como memórias podem ser modificadas com o tempo, seja por repetidas reconstruções, pela influência de emoções, por novas informações, ou por processos biológicos normais. Essas transformações podem aproximar ou afastar a memória do evento original, tornando algumas lembranças menos precisas, apesar de ainda parecerem verdadeiras para quem as recorda.

Este tipo de pesquisa ajuda a explicar do ponto de vista clínico por que pacientes com Alzheimer lembram do passado remoto mas esquecem o recente. Tambem, por que memórias traumáticas são intrusivas, ou como falsas memórias surgem.
Do ponto de vista jurídico ajuda a entender por que testemunhos podem ser distorcidos mesmo sem intenção. Já do ponto de vista do desenvolvimento ajuda a entender por que memórias de crianças são mais suscetíveis a edição. Por fim, do ponto de vista tecnológico ajuda a construir IA inspirada em memória humana, e como criar sistemas de reconsolidação artificial.
LEIA MAIS:
The cognitive neuroscience of memory representations
Michael D. Rugg, and Louis Renoult
Neuroscience & Biobehavioral Reviews, Volume 179, December 2025, 106417
Abstract:
The present paper considers the cognitive neuroscience of memory from a representational perspective with the aim of shedding light on current empirical and theoretical issues. We focus on episodic memory, differentiating active versus latent, and cognitive versus neural memory representations. We adopt a causal perspective, according to which a memory representation must have a causal connection to a past event to count as a memory. We note that retrieved episodic information may nonetheless only partially determine the content of an active memory representation, which can comprise a combination of the retrieved information with semantic, schematic and situational information. We further note that, especially in the case of memories for temporally remote events, re-encoding operations likely lead to a causal chain that extends from the original experience of the event to its currently accessible memory trace. We discuss how the reinstatement framework provides a mechanistic basis for the causal linkage between an experience, the memory trace encoding it, and the episodic memory of the experience, highlighting the crucial role of hippocampal engrams in encoding patterns of neocortical activity that, when active, constitute the neural representation of an episodic memory. Finally, we discuss some of the ways in which a memory can become modified and hence distanced from the episode that precipitated it.



Comentários