Quando Não Há Sinais: A Genética Das Mortes Por Suicídio Sem Aviso
- Lidi Garcia
- há 2 dias
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Este estudo analisou quase três mil mortes por suicídio em Utah e mostrou que pessoas que morreram por suicídio sem histórico de ideação suicida apresentam predisposições genéticas significativamente menores para várias condições psiquiátricas, como depressão, ansiedade, neuroticismo e TEPT, quando comparadas às que tinham histórico de ideação. Além disso, indivíduos sem ideação não diferem geneticamente da população geral em aspectos importantes. Esses resultados indicam que metade das mortes por suicídio segue uma trajetória distinta da tradicionalmente associada à psicopatologia, sugerindo a existência de diferentes mecanismos de risco e abrindo novas possibilidades para prevenção e pesquisa.
O suicídio é um grave problema de saúde pública em todo o mundo. Só nos Estados Unidos, em 2022, quase cinquenta mil pessoas morreram dessa forma, e globalmente as mortes chegam a mais de 700 mil por ano. Embora muito se discuta sobre fatores de risco, ainda é surpreendente o quanto permanece desconhecido sobre quem realmente corre maior risco de morrer por suicídio.
O melhor indicador conhecido é uma tentativa anterior, mas mesmo esse marcador é limitado, já que apenas uma pequena parcela das pessoas que tentam suicídio, entre dois e sete por cento, acaba morrendo por essa causa.
Além disso, metade das pessoas que morrem por suicídio nunca apresentou sinais registrados de pensamentos suicidas, e outra metade não tinha qualquer diagnóstico psiquiátrico. Isso mostra que, apesar de importantes, tentativas prévias e transtornos mentais não explicam completamente o risco de morte por suicídio.

Foi nesse contexto que o estudo atual foi desenvolvido, utilizando dados do Utah Suicide Mortality Research Study (USMRS), um dos bancos de dados mais detalhados e completos sobre mortes por suicídio. Pesquisas anteriores desse banco de dados já tinham mostrado algo intrigante: pessoas que morreram por suicídio sem histórico de ideação suicida tinham significativamente menos diagnósticos psiquiátricos registrados do que pessoas que morreram por suicídio mas já tinham apresentado pensamentos suicidas.
Esse padrão poderia ter duas explicações. Talvez essas pessoas simplesmente nunca tivessem procurado atendimento em saúde mental, o que significa que seus problemas não foram registrados, ou talvez houvesse, de fato, uma diferença genética subjacente que as colocasse em trajetórias de risco distintas.
Para investigar essa possibilidade, os pesquisadores usaram um método chamado escore poligênico (PGS). Em termos simples, esse escore funciona como uma soma de milhares de pequenas influências genéticas que, juntas, aumentam ou diminuem o risco de alguém desenvolver determinada condição, como depressão, ansiedade ou transtorno de estresse pós-traumático.
Cada gene contribui muito pouco isoladamente, mas quando todas essas contribuições são somadas, é possível estimar uma predisposição geral. O objetivo do estudo foi comparar os escores poligênicos de dois grupos: pessoas que morreram por suicídio e tinham histórico de ideação suicida, e pessoas que morreram por suicídio mas nunca tinham demonstrado ou registrado qualquer pensamento suicida antes da morte.

A parte metodológica é especialmente importante para entender a robustez desses achados. Os pesquisadores selecionaram estatísticas genéticas de doze grandes estudos internacionais sobre diferentes condições neuropsiquiátricas.
Esses estudos foram escolhidos porque tinham amostras enormes, porque incluíam populações com ancestralidade semelhante à população de Utah e porque eram pesquisas recentes e rigorosas. Usando esses dados, calcularam-se os escores poligênicos de cada indivíduo falecido, a partir de material genético já disponível no banco de dados.
Depois disso, os pesquisadores dividiram os casos em dois grupos: o grupo SD-S, composto por pessoas que demonstraram ideação suicida em algum momento, e o grupo SD-N, formado por pessoas sem registro de ideação suicida.
Cada escore poligênico de cada pessoa foi então comparado entre os dois grupos, sempre levando em consideração fatores importantes que poderiam distorcer os resultados, como idade, sexo e ancestralidade genética. Isso é essencial, porque diferenças entre grupos poderiam ser atribuídas não ao risco genético, mas a diferenças demográficas ou populacionais.
Os escores também foram comparados com uma grande amostra de controle com quase 20 mil pessoas da população geral. O estudo também investigou se os padrões se repetiam quando as pessoas eram divididas entre aquelas que morreram antes dos cinquenta anos e as que morreram depois dessa idade, para verificar se a relação entre genética e comportamento suicida mudava ao longo da vida.

Os resultados mostraram que pessoas que morreram por suicídio sem histórico de ideação suicida tinham escores genéticos significativamente mais baixos para diversas condições psiquiátricas, especialmente depressão maior, ansiedade, neuroticismo e transtorno de estresse pós-traumático.
Também apresentavam escores mais baixos para risco genético de Alzheimer, algo incluído no estudo porque algumas condições neurodegenerativas podem influenciar funcionamento emocional e comportamental. Em outras palavras, geneticamente, essas pessoas se pareciam menos com perfis típicos de vulnerabilidade psiquiátrica e mais com a população geral.
Um dado importante é que, quando comparado com o grupo controle, o grupo sem ideação suicida não diferia estatisticamente da população geral nos escores para depressão, neuroticismo e Alzheimer, o que reforça a ideia de que não apresentavam predisposições genéticas psiquiátricas elevadas.

Esses padrões sugerem que existem, de fato, duas trajetórias diferentes que podem levar à morte por suicídio. A primeira é aquela mais conhecida, relacionada a transtornos mentais, sofrimento emocional persistente, ideação suicida e tratamentos psiquiátricos.
A segunda parece envolver pessoas que não têm predisposição genética forte para transtornos psiquiátricos, que talvez não manifestem sintomas claros ou não procurem ajuda, e que podem ser influenciadas por fatores situacionais muito agudos, impulsividade, estresse extremo ou contextos inesperados. Isso implica que, para uma parte considerável das mortes por suicídio, os sinais clássicos não aparecem, nem no comportamento, nem na genética.
As conclusões são importantes para repensar estratégias de prevenção e pesquisa. Tradicionalmente, acredita-se que transtornos mentais são o núcleo central do risco de suicídio, mas os achados mostram que isso não se aplica a todos os casos.
É necessário desenvolver novas formas de identificar risco em pessoas que não apresentam sintomas tradicionais. O estudo também reforça a importância de se analisar suicídio não como um fenômeno unitário, mas como um conjunto de caminhos distintos, que exigem diferentes abordagens de prevenção.
LEIA MAIS:
Genetic Liabilities to Neuropsychiatric Conditions in Suicide Deaths With No Prior Suicidality
Hilary Coon, Andrey A. Shabalin, Eric T. Monson, Emily DiBlasi, Seonggyun Han, Lisa M. Baird, Erin A. Kaufman, Douglas Tharp, Michael J. Staley, Zhe Yu, Qingqin S. Li, Sarah M. Colbert, Amanda V. Bakian, Anna R. Docherty, Andrew M. McIntosh, Heather C. Whalley, Dierdre Amaro, David K. Crockett, Niamh Mullins, and Brooks R. Keeshin
JAMA Network Open. 2025;8;(10):e2538204.
DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2025.38204
Abstract:
Although suicide attempt is the most robust estimator of suicide death, few individuals who attempt it go on to die by suicide (<10%), and approximately 50% of suicide deaths occur in the absence of evidence of prior attempts. The risks are particularly poorly understood in this group. To study underlying polygenic liabilities among suicide deaths without evidence of prior nonfatal suicidality (SD-N) compared with suicide deaths with prior suicidality (SD-S), testing prior results showing significantly lower clinical risks of neuropsychiatric traits in SD-N vs SD-S. In this cohort study, polygenic scores (PGS) were computed using summary statistics from 12 published source studies, then compared across SD-N and SD-S groups taken from the Utah Suicide Mortality Research Study (cases accrued between December 1998 and October 2022). PGS from the suicide death cohorts were also compared to unselected population controls. Evidence of prior suicidality was determined from diagnoses and clinical notes. Cohort differences in PGS reflecting neuropsychiatric conditions were tested using analysis of covariance, adjusting for sex, age, and genetic ancestry, followed by additional analyses within sex and within subgroups defined by age at death (50 years or younger vs older than 50 years). PGS spanned 12 neuropsychiatric conditions. Data were analyzed between July 2024 and July 2025. The SD-N cohort (n = 1337) had significantly more male suicide deaths (1105 [82.65%] vs 974 [67.95%]), with an older mean (SD) age at death (47.5 [18.9] vs 41.4 [15.6] years) than the SD-S cohort (n = 1432). The control cohort (n = 19 499) had significantly fewer males (8597 [44.09%]) than both suicide death subsets. Genetic ancestry was similar across the SD-N and SD-S groups (96.77% and 96.81% European ancestry), and control (97.38% European ancestry) groups. Socioeconomic status was not significantly different across suicide cohorts adjusted for age and sex (occupation ranking SD-N mean [SD], 57.16 [24.54]; SD-S mean [SD], 54.72 [25.29]; t = 1.30; P = .70; maximum education SD-N mean [SD], 2.70 [1.12]; SD-S mean [SD], 2.67 [1.13]; Fisher exact test P = .38). Comparing SD-N to SD-S revealed significantly lower (false discovery rate P < .05) PGS in the SD-N group for major depressive disorder (adjusted mean difference, 0.085 [95% CI, 0.018-0.152]; P = .01), depressed affect (adjusted mean difference, 0.081 [95% CI, 0.012-0.149]; P = .02), anxiety (adjusted mean difference, 0.091 [95% CI, 0.021-0.161]; P = .01), neuroticism (adjusted mean difference, 0.102 [95% CI, 0.033-0.171]; P = .004), and Alzheimer disease (adjusted mean difference, 0.090 [95% CI, 0.021-0.1658]; P = .01), and lower (false discovery rate P < .10) PGS in SD-N for posttraumatic stress disorder (adjusted mean difference, 0.070 [95% CI, 0.001-0.139]; P = .04). Of note, SD-N PGS were not significantly different from controls for depressed affect (adjusted mean difference, 0.037 [95% CI, −0.019 to 0.093]), neuroticism (adjusted mean difference, −0.001 [95% CI, −0.057 to 0.055]), or Alzheimer disease (adjusted mean difference, −0.027 [95% CI, −0.083 to 0.029]). In this cohort study, SD-N showed significantly different genetic liabilities to neuropsychiatric conditions from SD-S. Results have implications for future suicide research and prevention for persons at risk of mortality.



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