Por Que o Corpo Não Se Destrói? A Resposta Rendeu o Nobel de Medicina de 2025
- Lidi Garcia
- 7 de out.
- 4 min de leitura

Três cientistas, Mary E. Brunkow, Fred Ramsdell e Shimon Sakaguchi, receberam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2025 por revelarem como o sistema imunológico aprende a não atacar o próprio corpo. Sakaguchi identificou as células guardiãs, Brunkow e Ramsdell descobriram o gene que as comanda, e juntos explicaram como o sistema imunológico sabe o que deve e o que não deve atacar. Essa descoberta, sobre algo chamado tolerância imunológica periférica, explica por que a maioria das pessoas não desenvolve doenças autoimunes, nas quais o corpo se volta contra si mesmo.
O sistema imunológico é o exército do nosso corpo. Ele reconhece e destrói vírus, bactérias e células estranhas que podem nos causar doenças. Mas, às vezes, esse exército pode cometer erros e atacar órgãos saudáveis, como acontece no lúpus, na diabetes tipo 1 ou na artrite reumatoide.
Por isso, o sistema imunológico precisa de mecanismos de “freio”, que garantem que ele ataque apenas o inimigo certo. A descoberta dos laureados mostrou como esses freios funcionam e quem são os “guardas” que mantêm a paz dentro do corpo.

Illustrations: Mattias Karlén ©The Nobel Assembly at Karolinska Institutet
A primeira pista: o trabalho de Shimon Sakaguchi
Nos anos 1980 e 1990, o imunologista japonês Shimon Sakaguchi, então um jovem pesquisador, fez uma observação que contrariava o que todos acreditavam. Naquela época, pensava-se que o corpo aprendia a não se atacar apenas dentro do timo, um órgão localizado no peito, responsável por “treinar” as células do sistema imunológico. Nesse processo, conhecido como tolerância central, as células perigosas (que poderiam atacar o corpo) eram eliminadas antes de “sair” do timo.
Mas Sakaguchi percebeu que isso não era toda a história. Ele observou que, mesmo depois de sair do timo, o sistema imunológico tinha uma forma de se controlar ativamente.
Para entender isso, ele fez experimentos com camundongos sem timo, e viu que eles desenvolviam doenças autoimunes graves, como se o sistema imunológico tivesse enlouquecido. Quando ele injetava neles certas células T (um tipo de célula de defesa), os animais ficavam protegidos.

Illustrations: Mattias Karlén ©The Nobel Assembly at Karolinska Institutet
Ou seja, existia um tipo especial de célula que impedia os ataques do próprio sistema imunológico. Ele as chamou de células T reguladoras, ou Tregs. Em 1995, Sakaguchi publicou esse achado histórico, identificando essas células por duas proteínas de sua superfície: CD4 e CD25. Na época, muitos cientistas não acreditaram. Parecia bom demais para ser verdade.
O elo perdido: o gene misterioso descoberto por Brunkow e Ramsdell
Enquanto isso, nos Estados Unidos, dois outros cientistas, Mary Brunkow e Fred Ramsdell, trabalhavam em uma empresa de biotecnologia interessada em doenças autoimunes. Eles estudavam uma antiga linhagem de camundongos conhecida como “scurfy”, que nasciam doentes, com inflamação grave e morriam jovens.
Esses camundongos tinham algo errado no sistema imunológico, suas células T atacavam os próprios órgãos. Brunkow e Ramsdell decidiram descobrir qual gene estava causando isso. Na década de 1990, fazer isso era um desafio imenso: eles precisaram analisar milhões de pedaços de DNA até chegar ao gene defeituoso.
Depois de anos de trabalho, encontraram a resposta: uma mutação em um gene do cromossomo X, que eles batizaram de Foxp3. Quando esse gene estava danificado, os camundongos não produziam as células que controlavam o sistema imunológico, e o resultado era o caos total.
Logo depois, eles descobriram que mutação no mesmo gene em humanos causava uma doença autoimune rara e grave chamada IPEX, que também leva o corpo a se atacar.

Illustrations: Mattias Karlén ©The Nobel Assembly at Karolinska Institutet
A conexão final: Sakaguchi une as peças
Dois anos depois, Shimon Sakaguchi fechou o ciclo: ele demonstrou que o gene Foxp3 é o responsável por formar as células T reguladoras, aquelas que ele havia descoberto anos antes. Em outras palavras, o gene Foxp3 é o “manual de instruções” que ensina o corpo a produzir os guardiões do sistema imunológico.
Essas células T reguladoras funcionam como policiais que patrulham as defesas do corpo, garantindo que as células imunológicas não ataquem os tecidos saudáveis.
Antes dessas descobertas, acreditava-se que o controle do sistema imunológico era algo “automático”. Agora sabemos que existe um sistema ativo de vigilância dentro de nós, comandado pelas células T reguladoras e pelo gene Foxp3. Esse entendimento abriu um novo campo de pesquisa chamado tolerância imunológica periférica, ou seja, os mecanismos que mantêm o sistema imunológico sob controle fora do timo.

Illustrations: Mattias Karlén ©The Nobel Assembly at Karolinska Institutet
Graças a esses estudos, hoje os cientistas estão desenvolvendo tratamentos que ativam ou inibem essas células T reguladoras. Isso pode ajudar tanto em doenças autoimunes (aumentando os “freios”) quanto em câncer (reduzindo os “freios”, para o corpo atacar o tumor). Também há pesquisas promissoras em transplantes de órgãos, tentando evitar rejeições sem precisar de remédios imunossupressores fortes.
Mary Brunkow, Fred Ramsdell e Shimon Sakaguchi mostraram, cada um à sua maneira, como o corpo encontra equilíbrio entre defesa e tolerância. Sakaguchi identificou as células guardiãs, Brunkow e Ramsdell descobriram o gene que as comanda, e juntos explicaram como o sistema imunológico sabe o que deve e o que não deve atacar.
Graças a eles, entendemos melhor o que acontece quando o sistema imunológico perde o controle, e agora temos caminhos concretos para restaurar essa harmonia em doenças graves.
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The Nobel Assembly at Karolinska Institutet
Press release



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