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Negligência Infantil: Quando o Afeto Ausente Molda o Cérebro

  • Foto do escritor: Lidi Garcia
    Lidi Garcia
  • 9 de set.
  • 4 min de leitura
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A negligência infantil acontece quando uma criança não recebe cuidados básicos, como alimentação, proteção e atenção. Esse tipo de maus-trato é o mais comum e pode prejudicar gravemente o cérebro em desenvolvimento. Um estudo mostrou que crianças negligenciadas apresentam alterações em áreas cerebrais responsáveis pelas emoções e pelo comportamento, o que aumenta os riscos de problemas emocionais, dificuldades sociais e transtornos mentais ao longo da vida.


A negligência infantil acontece quando uma criança não recebe os cuidados básicos necessários para crescer de forma saudável, como alimentação adequada, roupas, abrigo, proteção e atenção emocional. Ela é a forma mais comum de maus-tratos, representando mais de 70% dos casos de abuso infantil registrados no mundo. 


Apesar de ser tão frequente e causar consequências graves, costuma receber menos atenção do que outros tipos de abuso mais visíveis, como a violência física. Os impactos da negligência não afetam apenas o bem-estar imediato da criança, mas também seu desenvolvimento a longo prazo, aumentando os riscos de doenças mentais, problemas de comportamento e até doenças físicas na vida adulta.


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O cérebro das crianças é extremamente sensível durante os primeiros anos de vida. É justamente nesse período que experiências de cuidado, estímulo e afeto moldam como as conexões entre os neurônios vão se organizar. Quando há negligência, essas conexões podem ser prejudicadas. 


Estudos anteriores já mostraram que a negligência pode alterar tanto a forma do cérebro (sua estrutura) quanto a forma como diferentes regiões se comunicam entre si (conectividade funcional). Por exemplo, foi observado que crianças negligenciadas podem ter mudanças no corpo caloso, uma região que conecta os dois hemisférios do cérebro, e no córtex cingulado anterior, que está ligado às emoções e à atenção.


Para investigar melhor esse fenômeno, os cientistas usam imagens avançadas do cérebro. Uma dessas técnicas é chamada de imagem por tensor de difusão. De forma simples, ela permite observar como a água se move dentro do tecido cerebral. 


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Esse movimento segue os caminhos das fibras nervosas, que funcionam como “cabos” que conectam diferentes áreas do cérebro. Quando a difusão da água está alterada, isso indica que as  fibras podem estar danificadas, menos organizadas ou com falhas na camada de mielina, que é a substância que envolve e protege os neurônios, acelerando a comunicação entre eles. Essa técnica é mais sensível do que outras formas de exame, porque consegue mostrar mudanças muito sutis, invisíveis em imagens convencionais.


Neste estudo, os pesquisadores da University of Western Ontario, Canadá, analisaram o cérebro de dois grupos de crianças: 21 que haviam sofrido principalmente negligência (confirmada por registros oficiais de serviços sociais) e 106 com desenvolvimento típico, que serviram como grupo de comparação. 


O objetivo era entender se a negligência, isolada de outros tipos de maus-tratos, estava associada a alterações específicas nas fibras cerebrais. Para isso, foi realizada uma análise detalhada de todo o cérebro, procurando diferenças em regiões importantes que conectam áreas ligadas às emoções, ao controle dos impulsos e ao comportamento.


Os resultados mostraram que as crianças negligenciadas tinham alterações marcantes em três regiões principais: o trato córtico-espinhal direito, o fascículo longitudinal superior direito e o cíngulo esquerdo. Nessas áreas, a difusão da água era maior do que no grupo sem histórico de negligência. Esse padrão sugere que as fibras nervosas estavam menos íntegras, o que pode prejudicar a comunicação eficiente entre diferentes partes do cérebro.


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Uma comparação do cérebro de crianças que sofreram negligência com o de crianças com desenvolvimento típico (DT). Os cientistas analisaram a chamada substância branca (WM), que é formada pelas fibras que conectam diferentes partes  do cérebro e permitem a comunicação entre elas. No grupo de crianças negligenciadas, essas fibras mostraram alterações na forma como a água se movimenta dentro do tecido cerebral, em especial um aumento da chamada difusividade axial, que indica mudanças na organização dessas conexões (VERDE). Essas diferenças apareceram em áreas importantes para emoções, comportamento e controle motor, como o cíngulo, o trato córtico-espinhal e o fascículo longitudinal superior. Como por exemplo, L.CG, cíngulo esquerdo; D.CST, trato espinhal cortical direito; D.SLF, fascículo longitudinal superior direito. Em resumo, a negligência infantil parece deixar marcas visíveis nas conexões cerebrais que sustentam o funcionamento cognitivo e emocional.


Mais importante ainda: essas alterações estavam ligadas a problemas de comportamento. As crianças com maior alteração nessas regiões apresentavam mais dificuldades de conduta, como impulsividade e problemas de interação social. Isso reforça a ideia de que a negligência infantil, ao afetar a microestrutura do cérebro, contribui diretamente para dificuldades emocionais e sociais que aparecem na infância e podem persistir na vida adulta.


Em resumo, este estudo mostra que a negligência infantil, mesmo quando não está acompanhada de outras formas de maus-tratos, deixa marcas detectáveis no cérebro das crianças. Essas marcas estão relacionadas a dificuldades de comportamento e emocionais, o que ajuda a explicar por que a negligência é tão prejudicial a longo prazo.


Compreender essas alterações é essencial para criar intervenções que ajudem a reduzir os danos e ofereçam às crianças negligenciadas melhores  condições de desenvolvimento.



LEIA MAIS:


White matter microstructure abnormalities in children experiencing neglect without other forms of maltreatment

Natasha Y.S. Kawata, Takashi X. Fujisawa, Kai Makita, Akiko Yao, Hidehiko Okazawa, and Akemi Tomoda 

Scientific Reports, volume 15, Article number: 27282 (2025) 


Abstract: 


Childhood maltreatment can disrupt brain development, leading to vulnerabilities in white matter (WM) microstructure, compromised brain integrity, and various psychiatric disorders. Among different forms of maltreatment, neglect is the most common; however, limited data exist on its specific impact on the brain. This study utilized diffusion tensor imaging to examine WM microstructure differences between neglected children without other types of maltreatment (Neglect, n = 21) and typically developing controls (TD, n = 106). Additionally, the study explored the relationship between WM microstructure alterations and psychosocial problems observed in neglected children. Neglected children exhibited larger axial diffusion (AD) in regions such as the right corticospinal tract (R.CST), right superior longitudinal fasciculus (R.SLF), and left cingulum (L.CG) compared to typically developing children. Increased AD in the R.CST, L.CG, and R.SLF was associated with conduct problems. These findings suggest that alterations in WM microstructure contributed to behavioral symptoms in neglected children.

 
 
 

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