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Cérebro Ferido: Traumas na Infância Alteram Circuitos Neurais Ligados à Agressividade e Autolesão

  • Foto do escritor: Lidi Garcia
    Lidi Garcia
  • 19 de nov.
  • 5 min de leitura
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Traumas precoces na infância podem deixar o cérebro mais sensível e desregulado, aumentando a chance de comportamentos agressivos e autolesivos. Pesquisadores descobriram que isso ocorre por meio da hiperatividade de canais de cálcio no núcleo reuniens do tálamo, que afetam circuitos cerebrais ligados à dor e às emoções. Bloquear essa atividade reduziu os comportamentos desadaptativos em animais, revelando um possível alvo para novos tratamentos.


A agressão e a autolesão são dois comportamentos que, à primeira vista, parecem muito diferentes, um volta-se para fora, o outro para dentro. No entanto, ambos têm em comum o fato de surgirem como formas desadaptativas de lidar com sofrimento emocional intenso. Em muitos casos, essas reações estão enraizadas em experiências traumáticas vividas na infância, conhecidas como traumas precoces de vida. 


Esses traumas, que incluem abandono, negligência, abuso físico ou emocional e perda de figuras de apego, podem alterar profundamente o desenvolvimento do cérebro, especialmente nas regiões responsáveis pela regulação emocional, pela percepção da dor e pelo controle dos impulsos.


Pesquisas anteriores já mostraram que pessoas com histórico de autolesão têm uma probabilidade muito maior, até cinco vezes, de apresentar comportamentos agressivos ou violentos contra outras pessoas.


Isso sugere que, em vez de fenômenos isolados, a agressão e a autolesão podem compartilhar um mesmo circuito neural, sendo diferentes manifestações de um mesmo desequilíbrio emocional e biológico. O presente estudo buscou compreender exatamente isso: quais mecanismos cerebrais explicam essa ligação e como o trauma precoce interfere nesses processos.


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Os canais de cálcio e sua importância no cérebro


Os pesquisadores focaram sua atenção em uma família de estruturas chamadas canais de cálcio do tipo L (LTCCs), que estão presentes nas membranas dos neurônios.


Esses canais são responsáveis por controlar a entrada de íons de cálcio nas células nervosas, um processo essencial para a comunicação entre neurônios, a formação de memórias, o aprendizado e a regulação do humor.


Dois genes principais controlam esses canais no cérebro: Cacna1c (que codifica o canal Cav1.2) e Cacna1d (Cav1.3). Estudos anteriores já haviam mostrado que alterações nesses canais estão ligadas a sintomas psiquiátricos, como impulsividade, ansiedade, agressividade e até depressão.


Quando há atividade excessiva dos canais de cálcio do tipo L, o cérebro pode reagir exageradamente a estímulos sociais e emocionais, o que favorece comportamentos agressivos e autolesivos.


Curiosamente, medicamentos que bloqueiam esses canais têm se mostrado eficazes na redução de episódios de autolesão em pacientes psiquiátricos. Por outro lado, substâncias que aumentam sua atividade, como o composto experimental Bay K 8644 (chamado de “Bay K”), provocam comportamentos de automutilação e mordidas repetitivas em animais de laboratório.


Esses achados levantaram uma hipótese importante: os canais de cálcio do tipo L podem ser uma peça central que conecta trauma precoce, disfunção emocional e comportamento agressivo.


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Para entender onde exatamente isso acontece no cérebro, os pesquisadores concentraram-se em uma área pouco conhecida, mas crucial: o núcleo reuniens (RE), localizado no tálamo, uma região que funciona como uma estação de retransmissão entre diferentes partes do cérebro.


O núcleo reuniens atua como um ponto de integração entre o hipocampo (relacionado à memória e à emoção) e o córtex pré-frontal medial (ligado ao raciocínio e ao controle de impulsos).


O núcleo reuniens ajuda o cérebro a coordenar respostas emocionais complexas, processar informações sociais e regular a dor. Ele também está envolvido na comunicação entre a razão e a emoção, ou seja, na capacidade de entender o que sentimos e reagir de maneira equilibrada. Em pessoas (ou animais) expostas a traumas precoces, esse delicado equilíbrio parece se romper.


No estudo, os cientistas utilizaram camundongos expostos a estresse precoce, um modelo experimental que imita os efeitos de traumas infantis em humanos. Esses animais mostraram comportamentos mais agressivos e uma maior tendência à autolesão.


Ao observar o cérebro desses camundongos, os pesquisadores notaram que os neurônios do núcleo reuniens que produzem o neurotransmissor glutamato (chamados de neurônios vGlut2) apresentavam atividade exagerada dos canais de cálcio do tipo L. Essa hiperatividade deixava o cérebro em estado de alerta constante, aumentando a sensibilidade à dor e a impulsividade.


Quando os cientistas ativaram artificialmente esses canais com a substância Bay K, mesmo em camundongos sem trauma prévio, surgiram os mesmos comportamentos agressivos e autolesivos. Já quando eles bloquearam a função do gene Cacna1c (que controla os canais de cálcio do tipo L) especificamente nos neurônios do núcleo reuniens, os camundongos que haviam sofrido trauma reduziram significativamente esses comportamentos. Isso mostra que essa região, e esses canais, desempenham um papel fundamental.


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O estudo revelou ainda que o núcleo reuniens se comunica com o hipocampo ventral (vCA1), uma área fortemente associada à emoção e à memória emocional. Essa conexão, chamada de via núcleo reuniens → hipocampo ventral, mostrou-se essencial para os comportamentos de agressão e autolesão.

Mais especificamente, os pesquisadores descobriram que:


- Quando o núcleo reuniens envia sinais para o hipotálamo, há um aumento da agressividade, possivelmente por ativar mecanismos ligados à defesa e à sobrevivência.


- Quando o núcleo reuniens se comunica com a amígdala basal, surge uma maior propensão à autolesão, associada ao alívio temporário da dor emocional.


Essas descobertas mostram que a agressão e a autolesão não são respostas opostas, mas sim duas saídas possíveis do mesmo circuito neural alterado.


Dependendo de como o núcleo reuniens se conecta com outras partes do cérebro, o indivíduo pode reagir voltando a dor contra si mesmo ou contra os outros.


Em resumo, o estudo demonstra que traumas na infância podem alterar o funcionamento de circuitos cerebrais fundamentais, tornando o cérebro mais vulnerável a respostas impulsivas e destrutivas. A descoberta de que o núcleo reuniens e os canais de cálcio do tipo L estão no centro dessa rede abre novas possibilidades terapêuticas. 


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Medicamentos que modulam a atividade desses canais já existem e são usados em outras condições neurológicas, como epilepsia e hipertensão. Assim, eles podem, no futuro, ser adaptados para tratar pessoas com histórico de trauma precoce e comportamentos autodestrutivos, ajudando a restaurar o equilíbrio entre emoção e controle cognitivo.


Essa pesquisa também reforça uma mensagem importante: traumas emocionais deixam marcas físicas reais no cérebro. Entender essas mudanças é essencial para desenvolver abordagens de tratamento mais humanas, eficazes e personalizadas, que considerem não apenas o comportamento visível, mas também a biologia e a história de cada indivíduo.



LEIA MAIS:


Thalamo-hippocampal pathway determines aggression and self-harm

JANE JUNG, IN-JEE YOU, and SORA SHIN 

SCIENCE ADVANCES, 5 Nov 2025, Vol 11, Issue 45

DOI: 10.1126/sciadv.ady5540


Abstract:


Aggression and self-harm are maladaptive coping strategies that often occur in individuals with a history of early life trauma (ELT), yet their underlying neural mechanisms remain unclear. Here, we identify L-type calcium channel (LTCC)–expressing thalamic nucleus reuniens (RE) as a critical component regulating both behaviors. ELT-induced excessive LTCC activity in vesicular glutamate transporter 2 (vGlut2) RE neurons and its corresponding effects on persistent neuronal activation contribute to increasing susceptibility to aggression and self-harm. Activation of vGlut2 RE neurons projecting to ventral hippocampus (vCA1), but not medial prefrontal cortex, promotes these behaviors in control mice. Furthermore, we found that RE neurons modulate two distinct subsets of vCA1 neurons, with one projecting to the hypothalamus to drive aggression and another to the basal amygdala to mediate self-harm. Our findings uncover how LTCC functions in the RE-to-vCA1 neural pathway increase the risk of aggression and self-harm, highlighting potential therapeutic targets for mitigating destructive behaviors following early adversity.


 
 
 

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