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Órgãos Cultivados em Laboratório: Ciência ou Ficção?


Os organoides são estruturas tridimensionais cultivadas em laboratório que imitam a organização e função de órgãos humanos. Eles são desenvolvidos a partir de células-tronco e podem replicar características específicas de tecidos, como mutações genéticas e comportamentos celulares.


Isso os torna ferramentas valiosas para estudar doenças e testar tratamentos em um ambiente controlado.


a) Do tecido cancerígeno humano, células tumorais podem ser isoladas e colocadas em cultura para produzir esferoides. b) Células-tronco embrionárias (ESCs) e células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs) são dois tipos comuns de células-tronco usadas como fonte celular para produção de organoides. Tanto as ESCs quanto as iPSCs podem formar uma variedade de modelos organoides quando recebem as dicas de sinalização e matriz extracelular especifica (ECM) corretas. Imagem: Vanessa Velasco, S. Ali Shariati & Rahim Esfandyarpour


O primeiro organoide foi criado no início dos anos 2000, com avanços importantes em 2013, quando Madeline A. Lancaster e seus colaboradores da Universidade de Cambridge desenvolveram organoides cerebrais a partir de células-tronco pluripotentes. Antes disso em 2009, pesquisas pioneiras, como as do cientista Hans Clevers, já haviam gerado modelos mais simples de organoides, como os intestinais, a partir de células-tronco.  


Recentemente, a pesquisa com organoides tem se beneficiado de várias inovações tecnológicas. Uma abordagem é a combinação de organoides epiteliais com outros tipos de células, como células imunológicas, fibroblastos ou neurônios. Isso aumenta a complexidade dos modelos, permitindo uma representação mais fiel dos tecidos e das doenças humanas. 


Primeiro Organoide cerebral. Fonte: M. Lancaster et al. Nature, volume 501, pages 373–379 (2013)


Outra inovação é o uso da tecnologia CRISPR–Cas9, que permite editar genes específicos dentro dos organoides. Por exemplo, cientistas modificaram geneticamente organoides de fígado humano para estudar mutações associadas a um tipo raro e agressivo de câncer hepático, o carcinoma fibrolamelar. Eles descobriram que a perda combinada de dois genes, BAP1 e PRKAR2A, desempenha um papel crucial no desenvolvimento dessa doença.


A bioimpressão 3D e 4D são técnicas promissoras. Elas permitem criar estruturas organoides maiores e mais complexas, organizando diferentes tipos de células em padrões específicos. Isso permite que os organoides se desenvolvam de maneira mais dinâmica, imitando melhor o comportamento dos tecidos vivos, como a rigidez e a presença de fatores de crescimento.  


Bioimpressão 3D de organoides


A inteligência artificial (IA) também está começando a desempenhar um papel na pesquisa de organoides. Modelos de IA podem analisar grandes quantidades de dados gerados a partir de experimentos com organoides, auxiliando na identificação de padrões e na previsão de respostas a tratamentos.


Por outro lado, organoides podem fornecer dados mais representativos para treinar modelos de IA, melhorando sua precisão em aplicações biomédicas.


Uma das aplicações mais promissoras dos organoides é na medicina personalizada. Como eles podem ser cultivados a partir de células de um paciente específico, os organoides refletem as características únicas da doença desse indivíduo, aumentando as chances de sucesso terapêutico e reduzindo efeitos colaterais.


Organoides derivados de pacientes foram estabelecidos para diversos tipos de câncer, incluindo colorretal, próstata, pâncreas, estômago, fígado, trato biliar, mama e tumores neuroendócrinos.


A triagem de medicamentos usando esses organoides está em andamento, tornando-os ferramentas poderosas para a descoberta de novos tratamentos e para a personalização da terapia oncológica. 

Organoide de figado humano. Meritxell Huch. The Gurdon Institute


Em outubro de 2024, um levantamento realizado no banco de dados ClinicalTrials.gov identificou 36 estudos clínicos em andamento utilizando organoides para desenvolver abordagens personalizadas no tratamento do câncer.


Alguns desses estudos já chegaram à fase 3, a última etapa antes da aprovação para uso clínico. Isso significa que, no futuro, esses modelos poderão ser incorporados na prática médica, permitindo terapias mais eficazes e individualizadas para pacientes com câncer.


Um dos desafios na modelagem de câncer com organoides é a complexidade dos tumores, que não são compostos apenas por células cancerígenas, mas também por células de suporte, como fibroblastos e células imunológicas. 


Tratamentos inovadores, como a imunoterapia, enfrentam dificuldades em organoides tradicionais, pois esses modelos não incluem os componentes imunológicos e a matriz extracelular presentes nos tumores reais, limitando a avaliação da eficácia dos tratamentos. 


Para superar esse desafio, estão sendo desenvolvidos organoides de próxima geração, que incorporam esses componentes, permitindo avaliar como células do sistema imunológico, como as células T, interagem com as células tumorais. 

Organoides de câncer de próstata abrem caminho para oncologia de precisão.


Nos últimos 15 anos, a pesquisa com organoides também trouxe avanços significativos no estudo da saúde reprodutiva.


Cientistas conseguiram criar organoides a partir de diferentes partes do sistema reprodutivo feminino, incluindo os ovários, as trompas de falópio, o endométrio (tecido que reveste o útero), o colo do útero e a placenta.


Esses modelos foram utilizados para estudar doenças como câncer cervical, endometriose, infertilidade e pré-eclâmpsia (uma condição perigosa que pode ocorrer durante a gravidez).


Além do sistema reprodutivo feminino, os pesquisadores também desenvolveram organoides de testículo e próstata para estudar a biologia reprodutiva masculina. Esses organoides já foram utilizados para formar biobancos e para prever a eficácia de tratamentos, auxiliando no planejamento de ensaios clínicos.


Os cientistas também estão explorando o uso de organoides para estudar o desenvolvimento fetal e possíveis doenças congênitas. Uma descoberta promissora foi a criação de organoides a partir de líquido amniótico, coletado durante a gravidez. 


Organoides fetais de pulmao gerados a partir do líquido amniótico humano. Fonte: GIUSEPPE CALÀ, PAOLO DE COPPI, MATTIA GERLI


Isso significa que, no futuro, os médicos poderão monitorar o desenvolvimento de órgãos fetais e identificar precocemente possíveis problemas de saúde no bebê. Atualmente, as técnicas de diagnóstico pré-natal incluem exames de imagem, testes genéticos e análises bioquímicas, mas nenhuma dessas abordagens consegue avaliar diretamente como os órgãos do feto estão se desenvolvendo.


Os organoides também estão se tornando uma ferramenta essencial para entender como poluentes ambientais afetam nossa saúde. Como os tecidos epiteliais (aqueles que revestem órgãos e superfícies do corpo) são os primeiros a entrar em contato com substâncias nocivas do ambiente, os organoides epiteliais estão sendo usados para estudar a toxicidade de poluentes e medicamentos.


Pesquisas recentes já demonstraram que organoides podem ser usados para avaliar os riscos de substâncias como microplásticos e partículas do ar, que podem causar danos ao pulmão e ao coração; produtos químicos como bisfenol A e ftalatos, que podem afetar as glândulas mamárias e outros órgãos; nanopartículas, que podem ser tóxicas para os rins e o fígado.


Nos últimos 100 anos, pandemias causadas por vírus têm ocorrido com frequência, causando milhões de mortes. Muitos desses vírus vêm de animais e podem reaparecer de forma inesperada. Para entender melhor como essas infecções acontecem e buscar tratamentos, cientistas têm usado organoides.


Esses organoides foram fundamentais para estudar o vírus Zika, ajudando a confirmar sua relação com a microcefalia em bebês. Durante a pandemia de COVID-19, permitiram analisar como o vírus atacava diferentes órgãos, como pulmões, rins e fígado. Mais recentemente, foram usados para estudar a infecção do vírus mpox na pele e nos rins.


O organoide de intestino infectado por rotavírus foi corado com marcadores para proteínas de rotavírus (vermelho), proteínas de superfície (verde), proteínas juncionais (magenta) e núcleos celulares (azul). As imagens foram adquiridas usando microscopia confocal. Vídeo cortesia do laboratório J.T. Gebert/Hyser.


Além de ajudar a entender como os vírus agem no corpo humano, organoides também são úteis no desenvolvimento de medicamentos e vacinas. Eles podem ser usados para testar antivirais e até para avaliar como o sistema imunológico reage a vacinas. Outra aplicação importante é a pesquisa de novos vírus que podem passar de animais para humanos, o que pode ajudar a prevenir futuras pandemias.


O envelhecimento da população traz desafios para a saúde, pois o corpo perde a capacidade de se regenerar. Organoides são usados para estudar o acúmulo de mutações ao longo da vida e entender como isso afeta diferentes órgãos. Eles também ajudam a identificar possíveis tratamentos para problemas relacionados ao envelhecimento, como a fibrose pulmonar e a perda de eficiência do fígado após transplantes. 

Organoide Intestinal. Kevin O’Rourke and Lukas Dow. Weill Cornell Medicine


Na pesquisa espacial, organoides permitem estudar os efeitos da microgravidade e da radiação no corpo humano. Isso é importante tanto para a saúde dos astronautas quanto para entender melhor processos de envelhecimento acelerado. Apesar dos desafios técnicos, como manter essas culturas no espaço, esses estudos podem trazer avanços tanto para viagens espaciais quanto para tratamentos na Terra.


A pesquisa está se expandindo rapidamente na medicina regenerativa, pois mostram grande potencial para estudar doenças e testar tratamentos personalizados. Os organoides derivados de células do próprio paciente (chamados de células autólogas) podem ser usados para terapias celulares, sem o risco de rejeição ou efeitos adversos.


Isso abre novas possibilidades para tratamentos regenerativos, já que podem ser utilizados em diferentes tipos de doenças com base no material genético do paciente.


Até o momento, três ensaios clínicos importantes têm sido realizados com organoides, focando em tratamentos para doenças como colite ulcerativa, diabetes e xerostomia (boca seca causada por radiação em pacientes com câncer). 


Um exemplo bem-sucedido é o uso de organoides de glândulas salivares para tratar a boca seca causada pela radioterapia em pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Esse tratamento usa células-tronco para regenerar as glândulas salivares danificadas pela radiação, melhorando a produção de saliva e a qualidade de vida dos pacientes.


Em 2022, o primeiro paciente foi tratado com células autólogas derivadas de organoides de glândulas salivares. Este foi o primeiro ensaio clínico de fase 1-2 com organoides em humanos para prevenir efeitos colaterais da radiação, representando um marco importante no uso de organoides na medicina regenerativa.


Os transplantes de órgãos são essenciais para pacientes com falência de órgãos em estágio terminal, mas há uma grande escassez de órgãos disponíveis para transplante. Organoides podem ajudar a preencher essa lacuna, oferecendo uma maneira de reparar órgãos danificados e até regenerar partes de órgãos como fígado.

Esses "epicardioides" - organoides feitos de células-tronco pluriopotentes - têm apenas 0,5 milímetros de tamanho. Os pesquisadores podem usá-los para imitar o desenvolvimento do coração humano em laboratório e estudar doenças cardíacas hereditárias. Imagem: Alessandra Moretti


Estudos estão sendo realizados para explorar o uso de organoides em transplantes de fígado, rins, corações e pulmões. Embora promissores, esses tratamentos ainda estão em estágios iniciais, e mais pesquisas são necessárias para entender o impacto total dessas terapias.


Apesar das promessas, o uso clínico de organoides enfrenta desafios técnicos. Iniciar culturas de organoides a partir de biópsias de tecidos ou fluídos do corpo, como bile ou urina, é possível, mas nem sempre eficiente. 


A expansão em grande escala de organoides para tratamentos clínicos também é um desafio, pois é um processo caro e demorado, que requer grande quantidade de material e pode gerar preocupações ambientais. 


Organoide cerebral ao vivo. Imagem: Universität Zürich


O uso de organoides também traz questões éticas importantes, especialmente em relação à obtenção e utilização de células de pacientes. Por exemplo, é necessário decidir como garantir o consentimento informado dos doadores de células e como lidar com as informações genéticas de cada paciente.


Além disso, os avanços em organoides levantam a questão de substituir testes em animais por métodos mais éticos e precisos, como o uso de organoides.


No contexto comercial, o uso de organoides pode gerar benefícios, mas também pode levantar questões sobre a distribuição justa dos lucros e benefícios entre pesquisadores, pacientes e empresas. 


Em resumo, os organoides trouxeram uma revolução na biologia das células-tronco e no estudo de doenças, em um curto período de tempo. A tecnologia promete expandir suas aplicações, não só em tratamentos regenerativos e transplantes de órgãos, mas também no estudo de doenças infecciosas e efeitos ambientais na saúde.


Embora ainda haja desafios a serem enfrentados, as inovações contínuas sugerem que, no futuro, os organoides serão uma parte crucial da medicina personalizada e regenerativa.



LEIA MAIS:


Clinical applications of human organoids

Monique M. A. Verstegen , Rob P. Coppes , Anne Beghin, Paolo De Coppi , Mattia F. M. Gerli, Nienke de Graeff, Qiuwei Pan, Yoshimasa Saito, Shaojun Shi,

Amir A. Zadpoor & Luc J. W. van der Laan  

Nature Medicine. 03 February 2025


Abstract:


Organoids are innovative three-dimensional and self-organizing cell  cultures of various lineages that can be used to study diverse tissues and  organs. Human organoids have dramatically increased our understanding of 

developmental and disease biology. They provide a patient-specific model  to study known diseases, with advantages over animal models, and can also  provide insights into emerging and future health threats related to climate  change, zoonotic infections, environmental pollutants or even microgravity  during space exploration. Furthermore, organoids show potential for  regenerative cell therapies and organ transplantation. Still, several  challenges for broad clinical application remain, including inefficiencies  in initiation and expansion, increasing model complexity and difficulties  with upscaling clinical-grade cultures and developing more organ-specific  human tissue microenvironments. To achieve the full potential of organoid 

technology, interdisciplinary efforts are needed, integrating advances  from biology, bioengineering, computational science, ethics and clinical  research. In this Review, we showcase pivotal achievements in epithelial  organoid research and technologies and provide an outlook for the future of  organoids in advancing human health and medicine.

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