Quando A Abstinência Dói: O Circuito Cerebral Que Leva à Recaída Nas Drogas
- Lidi Garcia
- 31 de jul.
- 6 min de leitura

Durante a abstinência de drogas, uma parte do cérebro ligada ao desconforto emocional, o chamado “circuito de aversão”, fica mais ativa, aumentando o sofrimento e favorecendo a recaída. Esse estudo mostrou que essa dor emocional não é apenas um efeito colateral, mas pode ser um mecanismo do cérebro para tentar evitar o uso excessivo da droga. Entender e tratar esse lado “negativo” da dependência pode abrir caminho para terapias mais eficazes.
Um dos maiores desafios no tratamento da dependência química é o alto índice de recaídas. As pessoas que tentam parar de usar drogas frequentemente voltam a usá-las, movidas por dois fatores principais: o desejo intenso pela substância e o sofrimento emocional causado pela abstinência.
Cientistas já sabiam que certas regiões do cérebro, como o núcleo accumbens e a área tegmentar ventral (ATV), passam por mudanças durante esse período de abstinência. Essas mudanças costumam estar ligadas ao aumento do desejo pela droga.
No entanto, o papel das emoções negativas, como ansiedade, angústia e irritabilidade, nesse processo ainda não era totalmente compreendido.

Um foco recente dos pesquisadores tem sido uma área chamada pálido ventral (VP), uma parte do cérebro ligada à motivação e ao comportamento relacionado a recompensas. A maior parte dos neurônios nessa região funciona com um tipo de sinal químico chamado GABA, que geralmente tem efeitos inibitórios.
Esses neurônios estão envolvidos na busca por recompensas, incluindo o uso de drogas. No entanto, cerca de 10 a 15% dos neurônios do pálido ventral são diferentes: eles usam glutamato e se mostram mais ativos quando o indivíduo passa por situações desagradáveis.
Esses neurônios “glutamatérgicos” do pálido ventral (chamados de VPGlu) parecem ser ativados durante experiências negativas e podem enviar sinais para outras regiões do cérebro ligadas à aversão, como a habênula lateral (LHb), uma espécie de centro do "desprazer".
Esses neurônios glutamatérgicos do pálido ventral se conectam a várias partes do cérebro, mas o estudo mostra que eles têm conexões mais fortes com áreas associadas a emoções negativas, como os neurônios GABAérgicos da área tegmentar ventral (VTAGABA) e a habênula lateral, e conexões mais fracas com áreas ligadas ao prazer, como os neurônios dopaminérgicos da área tegmentar ventral (VTADA).

Isso sugere que o sistema de neurônios glutamatérgicos do pálido ventral pode estar mais envolvido no lado negativo da dependência, ou seja, na dor emocional da abstinência, do que no desejo pela recompensa em si.
Os pesquisadores investigaram se esses neurônios mudam com o tempo durante a abstinência e a recaída. Eles analisaram como as conexões dos neurônios glutamatérgicos do pálido ventral com outras regiões do cérebro se modificam após o uso crônico de cocaína, durante a abstinência e após uma nova exposição à droga.
Eles descobriram que a abstinência faz com que as conexões dos neurônios glutamatérgicos do pálido ventral com a habênula lateral e com os neurônios GABAérgicos da área tegmentar ventral fiquem mais fortes, ou seja, ocorra uma plasticidade sináptica, uma mudança duradoura na força das conexões entre os neurônios.
Este experimento mostra que uma parte específica do cérebro (pálido ventral) contém neurônios que ajudam a frear o desejo por cocaína. Quando esses neurônios são desligados, os camundongos mostram mais vontade de usar a droga e até preferem o efeito de desligá-los. Isso sugere que esses neurônios fazem parte de um sistema interno de “freio emocional” contra recaídas.

Como fizeram:
A) Injeção para inibir neurônios específicos. Esta imagem mostra que os pesquisadores injetaram um vírus com um gene especial em uma região do cérebro chamada pálido ventral, para que apenas um tipo específico de neurônio (os que usam glutamato para enviar sinais) pudesse ser temporariamente desligado usando uma substância chamada CNO.
B) Etapas do experimento com cocaína. Este painel mostra o cronograma do experimento. Primeiro, os camundongos foram habituados ao ambiente. Depois, passaram por um treinamento para associar um lado da caixa com cocaína e o outro com solução salina. Após duas semanas de abstinência, eles foram testados para ver se lembravam dessa associação. Antes do teste, receberam injeção de CNO (que desliga os neurônios) ou um líquido neutro. Isso foi feito duas vezes, invertendo a ordem, para garantir que o efeito não fosse por acaso.
C ) Resultado: desligar os neurônios aumentou o desejo pela cocaína. O gráfico mostra que, ao desligar esses neurônios glutamatérgicos do pálido ventral com CNO, os camundongos mostraram mais preferência pelo lado da caixa associado à cocaína. Isso indica que esses neurônios provavelmente ajudam a controlar o desejo pela droga.
D) Caminhos percorridos pelos camundongos. Esses mapas mostram o caminho real percorrido por um camundongo durante o teste. Na parte de cima, o camundongo com injeção neutra (veículo) explora ambos os lados. Na parte de baixo, com CNO, o camundongo passa mais tempo no lado associado à cocaína, mostrando que gostou mais dele quando os neurônios foram desligados.
E e F) Movimento físico não foi alterado. Os gráficos mostram que a distância percorrida (E) e a velocidade (F) dos camundongos não mudaram com o uso de CNO. Ou seja, o aumento na preferência pela cocaína não foi por estarem mais agitados ou ativos, mas sim por uma mudança no comportamento motivacional.
G) Novo experimento: camundongos aprendem a gostar do efeito de desligar os neurônios. Nesta parte, os pesquisadores repetiram a estratégia: desligaram os mesmos neurônios em um lado da caixa e deixaram o outro lado "normal". A ideia era ver se os camundongos gostariam da sensação provocada pelo desligamento dos neurônios, mesmo sem droga.
H) Resultado: camundongos preferem o lado onde os neurônios foram desligados. O gráfico mostra que, após o experimento, os camundongos preferiram o lado da caixa onde os neurônios haviam sido desligados. Isso sugere que inibir esses neurônios tem um efeito "prazeroso", mesmo sem cocaína envolvida.
I) Caminho dos camundongos nesse novo teste. Estes mapas mostram como um camundongo se movimentou durante o teste: no topo (habituação) ele explora ambos os lados, mas no teste (embaixo), ele passa mais tempo no lado onde os neurônios foram desligados, demonstrando preferência.
J e K) Novamente, o movimento não mudou. Assim como antes, a distância total percorrida (J) e a velocidade (K) dos camundongos não mudaram. Isso confirma que a mudança de comportamento não é causada por agitação física, e sim por uma mudança real na motivação ou prazer.

Essas mudanças tornam o cérebro mais sensível às emoções negativas. Curiosamente, essas conexões voltam ao seu estado normal quando a pessoa se expõe novamente à droga, o que alivia temporariamente o sofrimento da abstinência. Isso reforça o ciclo vicioso: a droga alivia o desconforto, então a pessoa volta a usá-la para escapar da dor.
Uma das descobertas mais impressionantes foi que, quando os cientistas inibiram especificamente a conexão entre os neurônios glutamatérgicos do pálido ventral e a habênula lateral, os animais do estudo mostraram uma maior preferência e motivação pela cocaína.
Isso indica que esse “circuito de desprazer” pode funcionar como um tipo de freio interno. Em outras palavras, o desconforto emocional da abstinência pode ser uma tentativa do cérebro de evitar o uso excessivo da droga, como se dissesse: "isso faz você se sentir péssimo, então talvez não devesse continuar".
Esse estudo muda a forma como entendemos a dependência. Até agora, a maioria dos tratamentos tenta enfraquecer o sistema de recompensa do cérebro, o lado que sente prazer com a droga. Mas essas novas descobertas sugerem que talvez devêssemos prestar mais atenção ao outro lado: o sistema que gera dor emocional quando a droga é retirada.
Se conseguirmos entender melhor esse circuito de aversão e desenvolver formas de regulá-lo, talvez possamos criar tratamentos mais eficazes, que ajudem a prevenir recaídas e lidar com o verdadeiro sofrimento que acompanha a abstinência.

Essa figura mostra como certas conexões entre células do cérebro mudam durante o vício em drogas, especialmente durante a abstinência e a recaída. Aqui, dois caminhos são representados: um vai do pálido ventral para a habênula lateral, e o outro vai do pálido ventral para uma região inibitória da área tegmentar ventral. Durante a abstinência de cocaína, esses caminhos ficam mais fortes, representado pelo aumento nas bolinhas (que simbolizam a liberação de sinais) e nos receptores coloridos (que recebem esses sinais). No caminho que vai para a habênula lateral, tanto a liberação quanto a recepção de sinais aumentam. No outro caminho, apenas a liberação aumenta. Quando a droga é reintroduzida, essas conexões enfraquecem novamente. Isso mostra como o cérebro muda para pior durante a abstinência, contribuindo para o mal-estar emocional, e como essas mudanças são revertidas rapidamente quando a droga volta, o que ajuda a explicar por que a recaída é tão comum. * Preferência de lugar condicionada (CPP).
LEIA MAIS:
A ventral pallidal glutamatergic aversive network encodes abstinence from and reexposure to cocaine
LIRAN A. LEVI, KINERET INBAR, ESTI TSEIGER, AND YONATAN M. KUPCHIK
SCIENCE ADVANCES, 23 Jul 2025, Vol 11, Issue 30
DOI: 10.1126/sciadv.adu6074
Abstract:
Relapse to drugs of abuse can occur after long periods of abstinence. The ventral pallidum (VP) is central to drug addiction, and its glutamatergic neurons (VPGlu), whose activation drives aversion, inhibit drug seeking. However, it remains unknown whether these neurons encode the abstinence from and relapse to drugs. We show here that VPGlu projections specifically to the aversion-related lateral habenula (LHb) and ventral tegmental area gabaergic (VTAGABA) neurons show plasticity induced by abstinence from and reexposure to cocaine or cocaine cues. Both these pathways potentiate during abstinence and restore baseline values upon drug reexposure but with different plasticity mechanisms. Last, inhibiting the VPGlu → LHb pathway enhances cocaine preference after abstinence, while inhibiting the VPGlu → VTA pathway shows variable effects. These findings establish an aversive circuit orchestrated by VPGlu neurons encoding long-term abstinence-driven changes that may contribute to drug relapse.



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