O Cérebro Também Corre: Como Ele Se Adapta e Se Regenera Após Grandes Esforços
- Lidi Garcia
- 1 de mai.
- 4 min de leitura

Após correr uma maratona, o cérebro pode usar parte da sua mielina, uma camada que protege os neurônios, como fonte extra de energia. Nosso estudo mostrou que há uma pequena e temporária redução na mielina após a corrida, mas que ela se recupera depois. Isso revela uma nova forma de o cérebro se adaptar a situações de grande esforço, sem causar danos permanentes.
O cérebro humano é um dos órgãos mais exigentes em termos de energia, consumindo cerca de 20% da energia do corpo, apesar de representar apenas 2% do seu peso.
Uma parte crucial do cérebro são os oligodendrócitos, células especializadas responsáveis pela produção de mielina, uma substância gordurosa que forma uma camada protetora ao redor dos axônios dos neurônios. Essa camada, chamada de bainha de mielina, permite que os sinais elétricos entre neurônios viajem de forma rápida e eficiente. Sem mielina, a comunicação no cérebro seria muito mais lenta e ineficaz.
Interessantemente, os oligodendrócitos demonstram uma resistência surpreendente à falta de glicose, o principal combustível energético do corpo, e conseguem recorrer a fontes alternativas de energia, especialmente aquelas relacionadas às mitocôndrias, as "usinas de energia" das células.
Isso sugere que em situações em que o suprimento de glicose é comprometido, como durante atividades físicas extremas, os nervos mielinizados podem utilizar componentes da própria mielina como uma fonte de energia de emergência.

Oligodendrócito (amarelo) envolvendo os axônios de neurônios (azul)
Essa capacidade tem implicações em várias doenças. Por exemplo, na esclerose múltipla, uma doença em que a mielina é danificada, a inflamação contínua pode atrapalhar o fornecimento de energia necessário para reparar e manter essa camada protetora.
Como resultado, a homeostase energética, o equilíbrio interno necessário para a função normal das células, fica prejudicada, agravando a progressão da doença.
No contexto do exercício físico, esse estudo mostrou que após a conclusão de uma maratona, houve apenas uma redução pequena, mas detectável, na quantidade de mielina (medida por uma técnica de ressonância chamada fração aquosa da mielina, ou MWF). Isso torna improvável que, em condições normais, o corpo utilize significativamente a mielina como fonte de energia.
Esse estudo foi de natureza observacional e piloto, ou seja, uma primeira investigação para gerar hipóteses. Trabalhando com um número pequeno de participantes: 10 corredores (8 homens e 2 mulheres) com idades entre 45 e 73 anos, que participaram de maratonas urbanas (Donostia-San Sebastián e Valência) e de maratonas de montanha (Zegama-Aizkorri e Hiru Handiak) nos anos de 2022 e 2023.
Nenhum deles recebeu compensação financeira e todos forneceram consentimento informado para participar, seguindo rigorosamente os princípios éticos da Declaração de Helsinque.

As imagens cerebrais por ressonância magnética foram realizadas entre 24 e 48 horas antes e depois das maratonas, e em alguns casos adicionais duas semanas ou dois meses depois. As medidas focaram na fração aquosa da mielina (MWF), um substituto confiável para estimar o conteúdo de mielina no cérebro.
Notamos que as reduções na mielina eram mais evidentes em áreas responsáveis pela coordenação motora e integração sensorial e emocional, e que esses efeitos eram reversíveis: após dois meses, o nível de mielina parecia ter se normalizado.
No entanto, em cenários ainda mais extremos, como atividades físicas ainda mais desgastantes ou em estados de desnutrição grave, como na anorexia nervosa ou durante a fome, é possível que a mielina seja degradada para suprir as necessidades energéticas. De fato, estudos anteriores mostraram que a desnutrição compromete a formação e manutenção da mielina, levando a déficits cognitivos e alterações na estrutura cerebral.

Vistas sagitais, axiais e coronais das imagens 3D adquiridas com ressonância magnética, pré e pós-execução do exercício. As imagens não mostram diferenças interindividuais significativas para as diferentes sessões de imagem. Os volumes do cérebro inteiro e das estruturas permaneceram inalterados.
Além disso, enquanto o exercício físico regular e moderado é extremamente benéfico para a saúde cerebral, ajudando a preservar a função cognitiva ao longo da vida, o exercício físico extenuante e repetido pode ser prejudicial em pessoas geneticamente predispostas a certas doenças, como a esclerose lateral amiotrófica (ELA).

Oligodendrócito (azul) envolvendo os axônios de neurônios. Imagem Hill Lab
Em indivíduos vulneráveis, exercícios de alta intensidade podem exacerbar o risco de desenvolver a doença, afetando áreas do cérebro ricas em mielina, como o trato corticoespinhal, que é essencial para o movimento voluntário.
Um dos mecanismos envolvidos seria a excitotoxicidade por glutamato, um processo em que o excesso de estímulo nervoso causa dano ou morte celular, afetando também os oligodendrócitos e sua capacidade de manter a mielina.
Importante ressaltar que a mielina não é uma estrutura rígida e imutável. Existe algo chamado plasticidade da mielina, que é a capacidade do cérebro de ajustar a espessura e o funcionamento das bainhas de mielina em resposta à atividade neuronal.
Em outras palavras, o cérebro é capaz de "remodelar" suas conexões e suas proteções (a mielina) de acordo com a necessidade. Esses achados sugerem que a redução reversível da mielina após exercícios intensos, como correr uma maratona, pode representar uma nova forma de plasticidade: o corpo temporariamente utiliza componentes da mielina para suportar a alta demanda energética, e posteriormente a reconstitui.

O estudo tem algumas limitações, como o pequeno tamanho da amostra, dificuldades para medir alterações na substância cinzenta (onde há menos mielina naturalmente) e limitações técnicas da própria ressonância magnética, como tempo de varredura longo e a movimentação leve dos participantes durante o exame.
Em resumo, o conteúdo de mielina no cérebro humano pode ser temporariamente reduzido após exercícios intensos, como correr uma maratona, apoiando a ideia de que, em situações de grande estresse energético, a mielina pode funcionar como uma "reserva de energia" para o cérebro.
Essa descoberta amplia nossa compreensão não apenas da função da mielina, mas também da incrível capacidade do cérebro de se adaptar a desafios metabólicos extremos.
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Reversible reduction in brain myelin content upon marathon running
Pedro Ramos-Cabrer, Alberto Cabrera-Zubizarreta, Daniel Padro, Mario Matute-González, Alfredo Rodríguez-Antigüedad & Carlos Matute
Nature Metabolism (2025)
Abstract
Here we use magnetic resonance imaging to study the impact of marathon running on brain structure in humans. We show that the signal for myelin water fraction—a surrogate of myelin content—is substantially reduced upon marathon running in specific brain regions involved in motor coordination and sensory and emotional integration, but recovers within two months. These findings suggest that brain myelin content is temporarily and reversibly diminished by severe exercise, a finding consistent with recent evidence from rodent studies that suggest that myelin lipids may act as glial energy reserves in extreme metabolic conditions.



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