Resumo:
Pesquisas revelam que o aumento do consumo de álcool em indivíduos com transtorno bipolar pode exacerbar seus sintomas ao longo do tempo. Ao contrário da crença de que o álcool atua como automedicação, o estudo não mostra aumento no consumo de álcool devido a sintomas de humor intensificados. Isso ressalta a importância de hábitos consistentes de uso de álcool para melhor gerenciamento da saúde mental. As descobertas sugerem que os médicos devem discutir regularmente os padrões de consumo de álcool com pacientes bipolares.
O transtorno bipolar (TB) é uma condição de saúde mental caracterizada por mudanças extremas de humor, variando entre episódios de depressão e de mania (ou hipomania, uma forma mais leve). Durante a fase depressiva, a pessoa pode sentir tristeza profunda, falta de energia e perda de interesse em atividades diárias. Na fase maníaca, há euforia excessiva, aumento de energia, impulsividade e, às vezes, comportamento de risco.
A incidência do transtorno é de cerca de 1 a 3% da população mundial. Existem dois principais tipos: o transtorno bipolar tipo I (TBI), que envolve episódios maníacos completos, e o tipo II (TBII), que envolve hipomania alternada com depressão severa.
Quase metade das pessoas com transtorno bipolar também sofrem de transtorno de uso de álcool (TUA), o que agrava ainda mais os problemas associados ao TB. Essa combinação de transtornos pode levar a resultados clínicos ainda piores, como aumento do risco de suicídio, pior funcionamento social, hospitalizações mais frequentes e tratamentos mais caros.
Mesmo com essa relação tão significativa, os tratamentos para o TB raramente consideram ou incluem o manejo do TUA. Além disso, muitos estudos e ensaios clínicos sobre TB excluem pacientes com uso problemático de álcool, o que significa que boa parte da população afetada por esses problemas não está sendo representada na pesquisa.
A coocorrência de TUA e TB tem sido associada a uma série de complicações mais graves, como episódios prolongados de abstinência alcoólica, sintomas de humor mais complexos, como mania mista (caracterizada por agitação e depressão simultâneas) e ciclagem rápida (mudanças rápidas entre estados maníacos e depressivos).
Pacientes com essa combinação de transtornos também têm maior probabilidade de recaídas mais graves, comportamentos suicidas e maior dificuldade em se recuperar de episódios maníacos.
Estudos longitudinais demonstram que a presença do TUA piora os desfechos do TB ao longo do tempo. Por exemplo, em um estudo de 4 anos, pacientes com histórico de TUA tiveram uma recuperação mais lenta após episódios maníacos. Outro estudo de acompanhamento de 5 anos mostrou que indivíduos com TB tipo I e TUA apresentaram pior funcionamento social e mais comportamentos suicidas do que aqueles sem TUA.
Porém, ainda há muitas lacunas de conhecimento sobre como o uso de álcool flutua ao longo do tempo em pessoas com TB e como ele interage com os sintomas de humor (depressão, mania, hipomania) e ansiedade. Entender essa dinâmica é fundamental para saber quando e como intervir.
Isso se torna ainda mais importante diante da falta de pesquisas longitudinais que mostrem se o álcool é usado pelos pacientes com TB principalmente como uma forma de automedicação, o que muitos profissionais de saúde acreditam, mas que ainda não foi totalmente comprovado. Esses foram o objetivos de pesquisadores da University of Michigan e os seus resultados publicados na JAMA.
Eles aplicaram abordagens computacionais sofisticadas necessárias para este tipo de dados longitudinais intensivos. Os pesquisadores tentaram caracterizar os padrões longitudinais de uso de álcool no TB e examinar as associações temporais entre uso de álcool, humor, ansiedade e funcionamento ao longo do tempo.
Este estudo de coorte selecionou participantes e analisou dados do Prechter Longitudinal Study of Bipolar Disorder (PLS-BD), um estudo de coorte em andamento que recruta por meio de clínicas psiquiátricas, centros de saúde mental e eventos de extensão comunitária em Michigan e coleta dados fenotípicos repetidos.
Um total de 584 indivíduos (386 mulheres e 198 homens) com idade média de 40 anos foram incluídos. Esses participantes tinham um diagnóstico de TBI (445) ou TBII (139), com ou sem diagnóstico vitalício de TUA, e um acompanhamento mediano de 9 anos. Os dados utilizados foram extraídos de fevereiro de 2006 a abril de 2022, e o acompanhamento variou de 5 a 16 anos.
O uso de álcool foi medido usando o Teste de Identificação de Distúrbios por Uso de Álcool. Depressão, mania ou hipomania, ansiedade e funcionamento foram medidos usando o Questionário de Saúde do Paciente de 9 Itens, a Escala de Autoavaliação de Mania de Altman, a escala de avaliação de Transtorno de Ansiedade Generalizada de 7 itens e o Questionário de Funcionamento de Vida, respectivamente.
Padrões longitudinais de transtorno por uso de álcool. As regiões sombreadas refletem o EP ao redor da média. AUDIT indica Teste de identificação de transtornos por uso de álcool; BDI, transtorno bipolar tipo I; BDII, transtorno bipolar tipo II. A faixa de pontuação do AUDIT é de 0 a 40, com 8 ou mais indicando que o AUD é altamente provável; 8 a 14 indicando consumo perigoso ou prejudicial; e 15 a 40 indicando consumo grave ou dependência. doi:10.1001/jamanetworkopen.2024.15295
Os pesquisadores demostraram que mesmo um aumento, de curto prazo no consumo de álcool, pode ter efeitos duradouros, mesmo entre aqueles que bebem menos bebidas do que os especialistas consideram problemático. Mas o oposto não era verdade: aqueles que experimentaram um aumento em seus sintomas não passaram a ter um aumento no consumo de álcool que indicaria automedicação.
"Nosso estudo mostra que quando um indivíduo com transtorno bipolar bebe mais do que o normal para ele, independentemente de quanto mais, ele tem mais probabilidade de mostrar um aumento nos sintomas depressivos e/ou maníacos nos seis meses seguintes, mesmo que não tenha um transtorno de uso de álcool concomitante", diz a primeira autora Sarah Sperry, psicóloga e professora assistente do Departamento de Psiquiatria da Michigan Medicine, especializada em tratamento e pesquisa de transtorno bipolar.
O uso mais problemático de álcool foi associado a piores sintomas depressivos e maníacos ou hipomaníacos, bem como a um menor funcionamento no local de trabalho nos 6 meses seguintes, mas o aumento dos sintomas depressivos e maníacos ou hipomaníacos não foi associado a um maior uso subsequente de álcool. Essas últimas 2 associações foram mais pronunciadas no TBII do que no TBI. O uso de álcool não foi associado à ansiedade ao longo do tempo.
Este estudo descobriu que o uso de álcool, independentemente do status diagnóstico, foi associado à instabilidade do humor e ao pior funcionamento do trabalho no TB, mas o aumento dos sintomas de humor não foi associado ao uso subsequente de álcool.
Dada sua prevalência e repercussões, a avaliação dimensional e longitudinal e o gerenciamento do uso de álcool são necessários e devem ser integrados à pesquisa e ao tratamento padrão do TB.
LEIA MAIS:
Longitudinal Interplay Between Alcohol Use, Mood, and Functioning in Bipolar Spectrum Disorders
Sarah H. Sperry; Audrey R. Stromberg; Victoria A. Murphy, B.S; et al
JAMA. 2024. doi:10.1001/jamanetworkopen.2024.15295
Abstract:
Importance:
Alcohol use disorder (AUD) is present in nearly half of individuals with bipolar disorder (BD) and is associated with markedly worsening outcomes. Yet, the concurrent treatment of BD and AUD remains neglected in both research and clinical care; characterizing their dynamic interplay is crucial in improving outcomes.
Objective:
To characterize the longitudinal alcohol use patterns in BD and examine the temporal associations among alcohol use, mood, anxiety, and functioning over time.
Design, Setting, and Participants:
This cohort study selected participants and analyzed data from the Prechter Longitudinal Study of Bipolar Disorder (PLS-BD), an ongoing cohort study that recruits through psychiatric clinics, mental health centers, and community outreach events across Michigan and collects repeated phenotypic data. Participants selected for the present study were those with a diagnosis of BD type I (BDI) or type II (BDII) who had been in the study for at least 5 years. Data used were extracted from February 2006 to April 2022, and follow-up ranged from 5 to 16 years.
Main Outcomes and Measures:
Alcohol use was measured using the Alcohol Use Disorders Identification Test. Depression, mania or hypomania, anxiety, and functioning were measured using the 9-Item Patient Health Questionnaire, the Altman Self-Rating Mania Scale, the 7-item Generalized Anxiety Disorder assessment scale, and the Life Functioning Questionnaire, respectively.
Results:
A total of 584 individuals (386 females (66.1%); mean [SD] age, 40 [13.6] years) were included. These participants had a BDI (445 [76.2%]) or BDII (139 [23.8%]) diagnosis, with or without a lifetime diagnosis of AUD, and a median (IQR) follow-up of 9 (0-16) years. More problematic alcohol use was associated with worse depressive (β = 0.04; 95% credibility interval [CrI], 0.01-0.07) and manic or hypomanic symptoms (β = 0.04; 95% CrI, 0.01-0.07) as well as lower workplace functioning (β = 0.03; 95% CrI, 0.00-0.06) over the next 6 months, but increased depressive and manic or hypomanic symptoms were not associated with greater subsequent alcohol use. These latter 2 associations were more pronounced in BDII than BDI (mania or hypomania: β = 0.16 [95% CrI, 0.02-0.30]; workplace functioning: β = 0.26 [95% CrI, 0.06-0.45]). Alcohol use was not associated with anxiety over time.
Conclusions and Relevance:
This study found that alcohol use, regardless of diagnostic status, was associated with mood instability and poorer work functioning in BD, but increased mood symptoms were not associated with subsequent alcohol use. Given its prevalence and repercussions, dimensional and longitudinal assessment and management of alcohol use are necessary and should be integrated into research and standard treatment of BD.
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