Resumo:
Este estudo ressalta a importância de compreender melhor a interação entre TEA e TEPT, principalmente porque eventos estressantes moderados, considerados não extremos segundo critérios diagnósticos como o DSM-5, podem ser suficientes para causar memórias traumáticas em pessoas com autismo.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição complexa do neurodesenvolvimento, resultante de uma combinação de fatores genéticos e ambientais.
Essa condição compromete o funcionamento dos circuitos neuronais e provoca desafios comportamentais, como dificuldades na interação social, comportamentos repetitivos e, em muitos casos, déficits cognitivos.
Entre os problemas cognitivos observados estão hiper-reatividade a estímulos sensoriais, dificuldades de memória e processamento emocional alterado, que podem predispor indivíduos com TEA ao desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em resposta a situações de estresse.
Tanto o TEA quanto o TEPT compartilham características como dificuldade de regulação emocional, rigidez no pensamento e uma memória autobiográfica fragmentada.
No entanto, a relação entre esses dois transtornos ainda é pouco compreendida, o que limita o entendimento sobre como o estresse traumático afeta pessoas com autismo e quais mecanismos únicos influenciam a forma como elas percebem eventos traumáticos.
Um elemento-chave no processamento de memória relacionado ao medo é o córtex pré-frontal medial (mPFC), uma região cerebral que regula funções executivas e conecta-se a estruturas como o hipocampo e a amígdala. Estudos indicam que essa região está frequentemente disfuncional tanto no TEA quanto no TEPT, destacando seu papel central na interação entre os dois transtornos.
O mPFC abriga tipos específicos de neurônios conhecidos como interneurônios de parvalbumina (PV-INs), que controlam o equilíbrio entre excitação e inibição no cérebro, essencial para o processamento sensorial e a adaptação a situações de estresse.
Esses interneurônios são particularmente relevantes para os déficits observados no TEA, pois anomalias em seu funcionamento estão ligadas à atividade cerebral irregular e às dificuldades sociais características dessa condição.
Interneurônios da parvalbumina são fundamentais para manter o disparo de alta frequência e a neurotransmissão autoinibitória. Fonte: Sara Hijazi, María P. Pascual García, Yara Nabawi, Steven A. Kushner
Estudos em modelos animais mostraram que a ativação dessas células pode melhorar alguns aspectos do comportamento social no TEA, sugerindo que elas podem ser um alvo terapêutico promissor.
Pesquisadores da Australian National University exploraram a interação entre TEA e TEPT ao analisar como o estresse afeta o funcionamento cerebral e a formação de memórias em camundongos knock out da proteína 2 associada à contactina (Cntnap2 KO), que recapitula os principais sintomas do TEA.
Eles descobriram que a exposição a níveis moderados de estresse pode levar ao desenvolvimento de memórias traumáticas semelhantes ao TEPT nesses animais, além de agravar os traços comportamentais relacionados ao autismo.
Isso foi atribuído à hiperativação do mPFC e à desregulação do funcionamento dos interneurônios de parvalbumina.
mPFC e PV-INs na formação de memória semelhante ao TEPT. (A) Densidade de c-Fos células positivas entre o grupo controle (preto) e autista (magenta). A c-Fos é uma proteína expressa em células quando estão ativamente envolvidas na sinalização neuronal. Aqui, mede-se o aumento da expressão de c-Fos após a recordação de um contexto, indicando a ativação neuronal em resposta ao estímulo. (B) As imagens mostram áreas do cérebro onde há expressão de c-Fos. As áreas vermelhas indicam regiões onde os neurônios foram ativados em resposta à recordação do contexto. Pontas de seta simples: Indicam células marcadas tanto por c-Fos quanto por PV (neurônios de parvalbumina). Pontas de seta vazias: Indicam células que são positivas para c-Fos, mas não expressam PV. Essa distinção ajuda a identificar quais tipos de neurônios estão envolvidos na resposta. (C) Proporção de células positivas para c-Fos na população de PV-INs (interneurônios de parvalbumina). Um subtipo específico de neurônios que desempenha um papel fundamental no controle da atividade cerebral e no equilíbrio excitação/inibição.
Além disso, o estudo mostrou que essas memórias traumáticas podem ser parcialmente revertidas por técnicas de recontextualização, que reduzem os efeitos negativos do estresse nos sintomas centrais do TEA.
Esses achados sugerem que o impacto do TEPT no autismo pode ser mais profundo do que se pensava, influenciando a gravidade dos traços centrais do transtorno.
Os resultados ressaltam a importância de compreender melhor a interação entre TEA e TEPT, principalmente porque eventos estressantes moderados, considerados não extremos segundo critérios diagnósticos como o DSM-5, podem ser suficientes para causar memórias traumáticas em pessoas com autismo.
Essa vulnerabilidade sublinha a necessidade de intervenções terapêuticas específicas para lidar com o estresse em indivíduos com TEA, com o objetivo de mitigar o risco de desenvolvimento de TEPT e melhorar sua qualidade de vida.
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Parvalbumin interneuron activity in autism underlies susceptibility to PTSD-like memory formation
Alice Shaam Al Abed, Tiarne Vickie Allen, Noorya Yasmin Ahmed, Azza Sellami, Yovina Sontani, Elise Caitlin Rawlinson, Aline Marighetto, Aline Desmedt and Nathalie Dehorter
iScience, Volume 27, Issue 5, 109747
DOI: 10.1016/j.isci.2024.109747
Abstract:
A rising concern in autism spectrum disorder (ASD) is the heightened sensitivity to trauma, the potential consequences of which have been overlooked, particularly upon the severity of the ASD traits. We first demonstrate a reciprocal relationship between ASD and post-traumatic stress disorder (PTSD) and reveal that exposure to a mildly stressful event induces PTSD-like memory in four mouse models of ASD. We also establish an unanticipated consequence of stress, as the formation of PTSD-like memory leads to the aggravation of core autistic traits. Such a susceptibility to developing PTSD-like memory in ASD stems from hyperactivation of the prefrontal cortex and altered fine-tuning of parvalbumin interneuron firing. Traumatic memory can be treated by recontextualization, reducing the deleterious effects on the core symptoms of ASD in the Cntnap2 KO mouse model. This study provides a neurobiological and psychological framework for future examination of the impact of PTSD-like memory in autism.
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