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Do Virtual ao Irreal: O Papel das Mídias Sociais no Aumento de Transtornos Delirantes


Estudos indicam que as redes sociais podem amplificar certas características cognitivas, o que pode estar relacionado a transtornos psicológicos. A hipótese de "Amplificação de Ilusões por Mídias Sociais" sugere que algumas condições psiquiátricas, como transtorno de personalidade borderline, esquizofrenia e transtornos alimentares, podem ser potencializadas pelo ambiente digital.


Desde o surgimento das plataformas de mídia social, cada vez mais as interações humanas estão migrando para o ambiente digital. Atualmente, mais de dois bilhões de pessoas utilizam redes sociais ativamente em todo o mundo, e mais de 3,5 bilhões possuem acesso a dispositivos móveis. 


No Canadá, por exemplo, 94% dos adultos relataram ter pelo menos uma conta em alguma rede social em 2020. Nos Estados Unidos, esse número é ainda mais significativo entre os jovens: 97% dos adolescentes acessam a internet diariamente. 


Plataformas como YouTube e Facebook dominam esse cenário, com 80% e 69% dos adultos americanos utilizando essas redes, respectivamente. Além disso, a frequência de uso é alta: 70% dos usuários do Facebook acessam o site diariamente, sendo que metade deles o faz várias vezes ao dia.

A mídia social não apenas se tornou um espaço para compartilhar informações, mas também um ambiente central para interações sociais. Muitos usuários afirmam que as redes sociais são seu principal meio de contato com outras pessoas, chegando a dizer que elas "dão" a eles uma vida social.  


Com o avanço da tecnologia, os formatos de comunicação mudaram significativamente. Se antes as interações ocorriam predominantemente face a face, agora elas acontecem por meio de mensagens instantâneas, transmissões ao vivo, videochamadas e postagens em redes sociais.


Isso levanta diversas questões sobre como essa nova realidade influencia a psicologia humana e se há possíveis riscos ou impactos para a saúde mental.


Diferente do contato presencial, onde a comunicação envolve expressões faciais, tom de voz e linguagem corporal, as interações virtuais podem ocorrer de maneira assíncrona (em momentos diferentes) e sem as mesmas pistas físicas. 


Em uma conversa tradicional, duas pessoas compartilham o mesmo espaço físico, sincronizam o ritmo da fala e ajustam a comunicação com base em gestos e olhares. Já no ambiente digital, essas trocas são diferentes: emojis, memes e vídeos curtos substituem parte das expressões físicas e criam um espaço mental virtual compartilhado.

Além disso, as redes sociais permitem a construção de identidades digitais que podem ser moldadas e modificadas com facilidade. Em vez de uma identidade fixa, construída ao longo do tempo em diferentes contextos (como trabalho, escola e família), no mundo digital as pessoas podem criar e descartar perfis de acordo com suas preferências. Isso possibilita a existência de múltiplas versões do "eu", adaptadas para diferentes públicos e situações.


Outro aspecto notável das redes sociais é que elas permitem acompanhar a vida de outras pessoas sem que haja interação direta. Diferente de uma conversa tradicional, em que é necessário um contato ativo entre duas pessoas, no mundo digital é possível "seguir" alguém e visualizar suas postagens sem nunca ter falado com essa pessoa.

Esse fenômeno altera profundamente a forma como as relações sociais são construídas e mantidas.


Para ter sucesso no ambiente digital, é necessário desenvolver habilidades específicas, como a capacidade de entender e prever as reações do público. Esse processo está relacionado à cognição mentalista, a habilidade de interpretar estados mentais de outras pessoas, como intenções, desejos e emoções.


Essa capacidade é essencial para criar conteúdos que engajem e despertem o interesse de um público invisível.


Por exemplo, para criar um vídeo viral no TikTok, um usuário precisa antecipar quais temas serão populares e como apresentar a informação de forma envolvente. Como o público não está fisicamente presente para fornecer feedback imediato, o criador de conteúdo precisa imaginar como será recebido e ajustar sua performance com base nessa expectativa. 


Isso envolve uma série de habilidades cognitivas avançadas, como a capacidade de simular reações, prever emoções e adaptar a comunicação de forma eficaz.


A questão que surge é: como essa nova forma de interação afeta as funções psicológicas e psiquiátricas?

Os pesquisadores Simon Fraser University, Canada, fizeram uma revisão sistemática seguindo um conjunto de diretrizes chamado PRISMA, que ajuda a organizar e relatar esse tipo de análise. Uma das autoras, Nancy Yang, fez a busca manualmente, sem o uso de ferramentas automáticas.


Eles procuraram por estudos que relacionassem o uso de redes sociais (como Facebook, Twitter, Instagram, Snapchat e outras) com transtornos mentais específicos, como esquizofrenia, psicose, paranoia, transtorno bipolar, transtorno de personalidade borderline, transtorno alimentar, narcisismo e autismo, entre outros. 


Para isso, combinaram palavras-chave relacionadas a redes sociais com termos ligados a esses transtornos. Além disso, verificaram referências em estudos já publicados para encontrar pesquisas adicionais.


Foram considerados tanto estudos com análise de dados (quantitativos) quanto estudos que descrevem observações sem análise de dados (qualitativos). Os artigos precisavam discutir o uso de redes sociais em pessoas com algum dos transtornos mencionados.


Estudos que analisavam apenas o uso geral da internet ou smartphones, sem especificar redes sociais, foram excluídos. Além disso, os estudos quantitativos precisavam ter um grupo de controle (ou seja, um grupo de comparação).


Inicialmente, a busca encontrou 2.623 estudos. Depois, removeram 664 estudos repetidos. Em seguida, analisaram os títulos e resumos dos restantes, eliminando 1.750 estudos que não eram relevantes. Após essa triagem, tentaram acessar o texto completo de 209 estudos, mas 18 não estavam disponíveis.

Por fim, 191 estudos foram analisados em profundidade e, depois de mais uma rodada de exclusões, 155 estudos foram incluídos na revisão final. 


Estudos indicam que as redes sociais podem amplificar certas características cognitivas, o que pode estar relacionado a transtornos psicológicos. A hipótese de "Amplificação de Ilusões por Mídias Sociais" sugere que algumas condições psiquiátricas, como transtorno de personalidade borderline, esquizofrenia e transtornos alimentares, podem ser potencializadas pelo ambiente digital.


Indivíduos com traços esquizotípicos, por exemplo, tendem a apresentar uma cognição social exagerada, com maior sensibilidade ao contato visual, maior propensão a interpretar intenções ocultas nas interações e uma tendência ao pensamento conspiratório.


Essas características podem ser intensificadas pelo uso das redes sociais, onde a comunicação é menos direta e mais aberta a interpretações subjetivas.


Os impactos desse novo cenário ainda não são totalmente compreendidos, mas pesquisas sugerem que o uso excessivo das redes sociais pode estar associado a um aumento em características relacionadas a transtornos psicóticos, como paranoia e pensamento conspiratório. Ao mesmo tempo, indivíduos com traços autistas podem usar a internet de maneira mais sistemática, focada em interesses específicos.


O desafio agora é investigar como equilibrar os benefícios das redes sociais com seus possíveis efeitos negativos, garantindo que essa nova forma de interação seja saudável e sustentável para todos.



LEIA MAIS:


I tweet, therefore I am: a systematic review on social media use and disorders of the social brain

Nancy Yang & Bernard Crespi 

BMC Psychiatry, volume 25, Article number: 95 (2025)


Abstract: 


With rapid technological advances, social media has become an everyday form of human social interactions. For the first time in evolutionary history, people can now interact in virtual spaces where temporal, spatial, and embodied cues are decoupled from one another. What implications do these recent changes have for socio-cognitive phenotypes and mental disorders? We have conducted a systematic review on the relationships between social media use and mental disorders involving the social brain. The main findings indicate evidence of increased social media usage in individuals with psychotic spectrum phenotypes and especially among individuals with disorders characterized by alterations in the basic self, most notably narcissism, body dysmorphism, and eating disorders. These findings can be understood in the context of a new conceptual model, referred to here as ‘Delusion Amplification by Social Media’, whereby this suite of disorders and symptoms centrally involves forms of mentalistic delusions, linked with altered perception and perpetuation of distorted manifestations of the self, that are enabled and exacerbated by social media. In particular, an underdeveloped and incoherent sense of self, in conjunction with ‘real life’ social isolation that inhibits identify formation and facilitates virtual social interactions, may lead to use of social media to generate and maintain a more or less delusional sense of self identity. The delusions involved may be mental (as in narcissism and erotomania), or somatic (as in body dysmorphic disorder and eating disorders, encompassing either the entire body or specific body parts). In each case, the virtual nature of social media facilitates the delusionality because the self is defined and bolstered in this highly mentalistic environment, where real-life exposure of the delusion can be largely avoided. Current evidence also suggests that increased social media usage, via its disembodied and isolative nature, may be associated with psychotic spectrum phenotypes, especially delusionality, by the decoupling of inter and intra-corporeal cues integral to shared reality testing, leading to the blurring of self-other boundaries.

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