Resumo:
O interesse precoce e intenso por material escrito, conhecido como hiperlexia, ocorre em algumas crianças autistas, com ênfase em letras e números e uma habilidade de decodificação muito acima da compreensão. Esse fenômeno é observado em até 20% das crianças com autismo e parece indicar uma rota alternativa para o desenvolvimento da linguagem, uma vez que muitas delas apresentam dificuldades na comunicação oral e menor resposta à voz humana.
O interesse precoce e intenso em materiais escritos, junto com uma discrepância entre uma habilidade avançada de leitura e uma compreensão mais limitada do conteúdo, foi identificado cedo em algumas crianças com desenvolvimento atípico, e esse perfil foi chamado de "hiperlexia".
A hiperlexia descreve casos onde a criança tem uma capacidade de decodificar palavras muito superior à sua compreensão do que lê. Esse perfil de habilidade foi observado com frequência em crianças com autismo, aparecendo em cerca de 6% a 20% dos casos, dependendo dos critérios usados para avaliação.
Em uma revisão sistemática anterior, foi demonstrado que 84% dos indivíduos hiperléxicos estão no espectro autista, o que pode representar uma manifestação extrema de um interesse e habilidade pelo material escrito comum em individuos com autismo.
O desenvolvimento da linguagem em crianças típicas ocorre principalmente através de interações sociais, usando a comunicação oral como base, e envolve a troca de atenção com outras pessoas.
Por exemplo, uma criança que olha para algo que um adulto está apontando demonstra atenção conjunta, uma habilidade fundamental para a comunicação social e o aprendizado da linguagem. Em contraste, crianças autistas podem demonstrar menos resposta e atenção à voz humana, o que pode afetar o desenvolvimento da linguagem falada.
Estudos mostram que para uma parte significativa das crianças autistas, a atenção conjunta não é um fator que prediz seu desenvolvimento linguístico.
Essa característica inicial do autismo, de menor resposta à voz humana, sugere que fontes não relacionais (ou seja, não dependentes da interação com outras pessoas) de exposição à linguagem possam ter um papel importante em seu desenvolvimento linguístico.
Um interesse aumentado por material escrito pode, então, ser uma via alternativa para o desenvolvimento de alguns componentes da linguagem em crianças autistas.
Em uma pesquisa recente com pais de crianças autistas com idade média de 9 anos, aproximadamente 30% das crianças apresentavam interesse especial por números e pela leitura.
Medir esse interesse em leitura pode ser difícil, pois as medidas existentes foram pensadas para crianças típicas e geralmente se concentram no prazer que a criança tem ao ler com um adulto. Essas medidas não capturam bem o interesse por atividades de leitura autodirigidas (que a criança realiza sozinha) que são comuns entre crianças autistas.
Questionários atuais para avaliar interesses e comportamentos repetitivos no autismo também são limitados, pois focam em adolescentes e adultos, e geralmente enfatizam os aspectos negativos desses interesses, como rigidez e perseverança em um único tema.
Este estudo busca entender melhor o interesse por material escrito em uma grande amostra de crianças com autismo diagnosticadas de forma rigorosa e compará-las com crianças sem autismo com idade de até 6 anos.
Foram realizados dois estudos. O Estudo 1 analisou a prevalência e a intensidade do interesse por letras e números em uma amostra de crianças encaminhadas para uma avaliação diagnóstica de autismo, comparando as informações de crianças com autismo com as de crianças com outros diagnósticos.
O Estudo 2 repetiu as perguntas do Estudo 1, mas através de entrevistas diretas com os pais, investigando mais a fundo o momento de aparecimento desses interesses e suas características em comparação com crianças sem autismo e crianças com desenvolvimento típico, além de explorar a relação entre o interesse pela leitura e o desenvolvimento da linguagem oral.
Participaram do estudo 701 crianças (391 com autismo e 310 sem autismo) com idade inferior a 7 anos, todas encaminhadas para avaliação diagnóstica ao longo de quatro anos. Análises estatísticas foram feitas para avaliar a relação entre o diagnóstico de autismo e o nível de interesse por letras e números.
Uma subamostra, composta por 138 crianças autistas, 99 crianças sem autismo de outras condições clínicas, e 76 crianças com desenvolvimento típico, teve os pais entrevistados com questionários detalhados. Modelos estatísticos analisaram a idade em que os interesses por letras e números apareceram e a relação entre o diagnóstico e o nível de interesse.
Os resultados dos dois estudos mostram que entre 22% e 37% das crianças autistas têm um interesse intenso ou exclusivo por letras. As crianças autistas apresentaram 2,78 vezes mais chance de ter interesse elevado por letras e 3,49 vezes mais chance de ter interesse elevado por números em comparação com crianças clínicas não autistas da mesma idade.
Esse interesse elevado se manteve mesmo entre as crianças autistas que eram minimamente ou não verbais (76% da amostra). Além disso, a idade em que esses interesses surgiram não diferiu entre as crianças autistas e as crianças com desenvolvimento típico, e esse interesse não estava relacionado ao nível de linguagem oral da criança.
Crianças não autistas mostraram maior interesse em letras em contextos sociais, como ler com um adulto.
Surgimento do interesse em letras e números por grupo diagnóstico. Proporção de crianças autistas (verde), clínicas não autistas (roxo) e com desenvolvimento típico (amarelo) por idade de início do interesse (em meses). a) Proporção que demonstra interesse em letras, palavras escritas e leitura por idade. b) Proporção que demonstra interesse em números e símbolos matemáticos por idade
Este estudo tem algumas limitações, como a ausência de dados sociodemográficos detalhados e o uso de entrevistas telefônicas com cuidadores, o que pode introduzir vieses nas respostas.
Em suma, o surgimento precoce de um forte interesse por material escrito em crianças autistas ocorre em um momento em que elas apresentam grandes dificuldades no desenvolvimento da linguagem oral.
Esse interesse pela linguagem escrita, junto com achados recentes sobre o desenvolvimento não social da linguagem oral em algumas crianças autistas, sugere que a aquisição de linguagem no autismo pode seguir um caminho de desenvolvimento alternativo, diferente do desenvolvimento típico baseado em interações sociais.
LEIA MAIS:
Enhanced interest in letters and numbers in autistic children
Alexia Ostrolenk, David Gagnon, Mélanie Boisvert, Océane Lemire, Sophie-Catherine Dick, Marie-Pier Côté & Laurent Mottron
Molecular Autism, volume 15, Article number: 26 (2024)
Abstract:
An intense and precocious interest in written material, together with a discrepancy between decoding and reading comprehension skills are defining criteria for hyperlexia, which is found in up to 20% of autistic individuals. It may represent the extreme end of a broader interest in written material in autism. This study examines the magnitude and nature of the interest in written material in a large population of autistic and non-autistic children. All 701 children (391 autistic, 310 non-autistic) under the age of 7 referred to an autism assessment clinic over a span of 4 years were included. Ordinal logistic regressions assessed the association between diagnosis and the level of interest in letters and numbers. A nested sample of parents of 138 autistic, 99 non-autistic clinical, and 76 typically developing (TD) children completed a detailed questionnaire. Cox proportional hazards models analyzed the age of emergence of these interests. Linear regressions evaluated the association between diagnosis and interest level. The frequency of each behaviour showing interest and competence with letters and numbers were compared. In the two studies, 22 to 37% of autistic children had an intense or exclusive interest in letters. The odds of having a greater interest in letters was 2.78 times higher for autistic children than for non-autistic clinical children of the same age, and 3.49 times higher for the interest in numbers, even if 76% of autistic children were minimally or non-verbal. The age of emergence of these interests did not differ between autistic and TD children and did not depend on their level of oral language. Non-autistic children showed more interest in letters within a social context. The study holds limitations inherent to the use of a phone questionnaire with caregivers and missing sociodemographic information. The emergence of the interest of autistic children toward written language is contemporaneous to the moment in their development where they display a strong deficit in oral language. Together with recent demonstrations of non-social development of oral language in some autistic children, precocious and intense interest in written material suggests that language acquisition in autism may follow an alternative developmental pathway.
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